PNDH-3:  O Doce Cheiro do Incenso
Por Carlos Alberto Lungarzo
O  PNDH-3 provocou pânico e desconforto não apenas nas casernas, mas também nos  púlpitos. Esta é uma coincidência muito natural, pois, entre o século 4º e o  século 19º, as forças armadas, a Igreja Católica e o poder político foram  mais do que íntimos aliados. Foram três aspectos de uma mesma entidade, como na alegoria trinitária. Na Idade Média, os papeis de bispos,  nobres, e chefes militares estavam misturados, e o próprio Papa era uma réplica  do Imperador. Algo amortecida, esta fusão continuou na Idade Moderna. Richelieu  tinha título de duque, chegou a cardeal, e foi o mais importante secretário de  estado do Absolutismo.
O  poder absoluto e sem fissuras dos católicos foi afetado por vários processos.  Houve a eclosão da Reforma Protestante, a filosofia da tolerância (representada  especialmente pelo apelo de John Locke em A  Letter Concerning Toleration, em 1689), as Revoluções Inglesas, o Iluminismo, a Revolução Francesa e, em  seguida, a aparição da esquerda: socialistas, marxistas, anarquistas. As  esperanças de uma reversão foram depositadas no bonapartismo e nos vários  fascismos. Entretanto, quando Pio 12º viu a guerra perdida, o Vaticano se tornou  mais negociador.
A  crise atual é reconhecida pelos próprios fieis. Autoridades eclesiais de todos  os escalões lamentam a fuga de católicos para outras seitas.. Na Europa, templos  fecham por falta de público. A proporção de pessoas “sem religião institucional”  aumenta em todo Ocidente. Muitos dizem que aquilo é obra do demônio, outros que  a Igreja atua com soberba e vaidade, e alguns pensam que um catolicismo  progressista, popular, de base, libertador, etc., acabará dando certo. (Algo  que, meio século após Camilo Torres, a história não confirma.) Consciente da  situação, porém discreto como sempre, Bento 16º viajou aos EEUU para uma safra  de fé entre 30 milhões de latinos que, vítimas do racismo e da xenofobia,  encontram na religião legada pela colônia sua principal consolação..
No  Brasil, a presença de numerosos ritos africanos e o sincretismo próprio de um  país miscigenado aberto ao Atlântico e montado sobre dois hemisférios,  acalentaram durante muito tempo as esperanças de uma igreja revolucionária e  humanista. Numa extensão difícil de controlar, habitada por uma população  multicolor, era impossível pinçar as heresias como faziam os papas medievais.  Assim, durante algum tempo, a teologia da libertação captou parte significativa  do baixo clero e até ganhou as simpatias de vários bispos. Os militares  brasileiros foram herdeiros de uma direita menos mística que o falangismo  espanhol, o carlismo ou a ortodoxia pré-tridentina, e seus planos ditatoriais  entraram em conflito com a Igreja. Este atrito teve várias fontes, mas existiu  um sentimento protetor em alguns prelados. Mas isso é tempo passado.
A Rebelião dos  Bispos
Há  vários pontos do PNDH-3 que incomodam os católicos.  Um dos mais problemáticos é  o inciso (g) do Objetivo  Estratégico III (Diretriz  9, Eixo III): o direito ao aborto. Outro é o Objetivo  Estratégico V, referido ao direito de orientação sexual e  identidade de gênero, cujos incisos produzem pavor.
Já  o inciso (c) do Objetivo  VI da Diretriz  10, no Eixo III (“Desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos  religiosos em estabelecimentos públicos da União”) parece gerado pela máquina do  tempo. Há duas perguntas sobre isto que são igualmente arcaicas: (1) Por que  esta questão não está ainda resolvida, depois de séculos de luta? (2) Por que a  Igreja se incomoda tanto com a ausência de crucifixos nos juizados, na Receita  Federal, nos ministérios, nas delegacias?
Sendo  um problema menor, pode-se tentar uma resposta.  A Igreja se acha parte  fundamental da história de Ocidente (como o pretendeu durante a fundação do  Conselho de Europa) e defende esse privilégio por todos os meios. Sem dúvida, é;  mas em que sentido?
No  03/02/2010, no Brasil, 67 bispos fizeram circular uma proclama na que reiteram  críticas a estes pontos, que já tinham sido proferidas  pela CNBB no dia 15 de  janeiro. Vamos nos deter apenas numa. O manifesto, segundo a imprensa,  demoniza...
"...a  criação de mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em  estabelecimentos públicos da União, pois considera que tal medida, intolerante,  pretende ignorar nossas raízes históricas".
Além  disso, os piedosos debatedores acusam o governo de autoritário e “intolerante” ,  ameaçam com apocalípticos conflitos sociais, e mencionam em seu favor a rejeição  destas propostas “por organismos legítimos”. Será um trailer de uma nova  Marcha  da Família com Deus pela Liberdade, como nos tristes anos 60?  Analistas de esquerda talvez ridiculariziam essa hipótese, com base na situação  mundial atual, radicalmente diferente daquela de 1964. E talvez eles estejam  certos. Mas, como sabemos, a evolução futura da sociedade, que é um sistema  aberto, só  pode ser prevista com alguma vaga probabilidade. Ou, para quem não  goste desta apreciação científica (que nos pode levar ao mesmo banco dos réus  que a Galileu), usemos expressões mais elevadas: O  futuro a Deus pertence.
Raízes (e Forestas)  Históricas
Em  tempos modernos, a Igreja tem utilizado, tanto nas Américas como na Europa, o  argumento das raízes  históricas. Quando Vaticano exigiu que as declarações da UE  sobre suas origens e seus objetivos incluíssem o papel da Igreja, apelou às  raízes históricas muito mais que a suas tarefas atuais.
Apesar  da influência da Igreja nos governos, exércitos, economias e partidos de vários  países, o poder terreno do clero parece esmorecer. Hoje, achamos cômica a  pretensão de Churchill de perturbar Stalin usando as opiniões do Papa sobre a  Guerra.
É  claro que ninguém acha que possa entender-se a história sem a Igreja Católica.  Mas, esta afirmação objetiva parece pouco relacionada com a necessidade de  exibir estátuas, crucifixos, quadros moralizantes e coisas do gênero nos  edifícios da União.  No Brasil, onde a memória histórica é muito baixa, sendo  poucas as pessoas que reconheceriam efígies de personagens como Tiradentes, é  supérfluo que a história da Igreja, tantas vezes celebrada nos muitos feriados,  seja recriada também nos prédios públicos.  Aliás, a reivindicação do  catolicismo como “raiz” da cultura brasileira e latino-americana, coloca vários  problemas.
Uma  tradição histórica nem sempre é positiva para a felicidade da sociedade. Quem  pode negar a enorme influência histórica do nazismo? São poucos os fenômenos  internacionais que ainda hoje podemos explicar sem nos referirmos à Segunda  Guerra Mundial, e as truculências do Reich que a deflagraram. Depois de séculos  tentando refutar o verdadeiro efeito da Igreja nos valores e direitos humanos,  finalmente, na virada do milênio, um Papa decidiu adotar uma estratégia mais  arguta.
No  domingo 12 de março de 2000, João Paulo 2º, secundado por seus homens de  confiança, investiu várias horas de orações numa pitoresca “autocrítica” pelas  vítimas da Igreja no passado. Todos foram contemplados: os judeus; os inimigos  da fé; os membros de outras religiões; os emigrantes; as mulheres; os membros de  outras raças; os menores abusados; os pobres, marginalizados e abandonados; as  “vítimas” do aborto e da biotecnologia (sic!);  os prisioneiros; os indefesos; as vítimas do poder econômico; etc. Veja o  script completo, com a entrada e saída dos atores, e a descrição do  cenário:
O  pedido de perdão mobilizou em seguida a totalidade da mídia, que falou dos  “pecados da Igreja”, e até influiu em veículos católicos. Com a mesma rapidez,  todos os teólogos revelaram a interpretação “correta”: o Papa, dando grande  mostra de humildade, tinha admitido, em nome da Igreja, os “pecados” dos  católicos, humanos imperfeitos. Mas a Igreja, como ente supranatural, eterno,  regido por Deus e alguns santos homens, não podia ter pecados. O resumo da ópera  é que o Vaticano reconheceu, pelos menos, o envolvimento dos “pecadores que  estavam dentro da Igreja” em todos os grandes fatos sangrentos, com exceção dos  que provinham do comunismo (stalinismo e maoísmo). Foi o maior golpe de efeito  do intelectualizado Papa, mas nem isso resolveu a crise da  instituição.
Como  no resto da América Latina, no Brasil, a conquista, a colonização, o extermínio  de índios e a escravidão precisavam um fundamento teológico. O avanço sobre  novos territórios, ao preço humano que fosse necessário, garantia a extensão da  fé católica, aumentava as riquezas da Igreja, e alargava o poder político  internacional do Papa. Além disso, a religião também atuava como causa. Apesar  de que a cobiça, o sadismo e a luxúria foram fortes motores para os militares  colonizadores, uma experiência tão cheia de perigos e privações exigia uma  consolação cuja intensidade estivesse à altura do sofrimento. Não existindo  nenhuma causa nobre para justificar aquelas aventuras, a fé em Deus, a crença em  sua proteção, o temor ao inferno, a promessa do paraíso, atuaram como  incentivos. Houve algumas contradições entre os padres solidários com os índios  e aqueles que escreveram códigos de tortura para que os laicos utilizassem.  Contudo, essas discrepâncias eram pequenas, se comparadas com a unicidade do  projeto de conquista, que elevaria a glória de Deus e encheria os bolsos dos  aventureiros.
Tem-se  argumentado, muitas vezes, que a colonização dos países anglo-saxões foi  energizada da mesma maneira pelo clero protestante. O assunto é complexo, mas  vale mencionar que a grande divergência entre as seitas reformadas, tornava mais  fácil o surgimento de grupos humanitários, mesmo que os dominantes fossem  puritanos cruéis e doentios. Assim, na conquista dos EEUU teve um peso (talvez  pequeno) a ideologia progressista dos Levelers,  os Ranters,  os Quakers,  os Amish e até de setores humanitários dentro das correntes tradicionais  (batistas, metodistas, etc.).
Por  outro lado, sendo mais práticos e menos metafísicos, os protestantes fazem pouca  questão de serem incluídos (através de testemunhos físicos como ícones ou  monumentos) na história dos países a cuja opressão contribuíram. A pretensão  católica de ostentar os símbolos religiosos como representação do passado coloca  várias dificuldades insuperáveis.
(1)  A exibição agressiva nos edifícios públicos, não é apenas uma violação do  “direito formal de opinião religiosa”. É uma ferida na carne daqueles que sofrem  ou sofreram pela perseguição eclesial (que ainda hoje são muitos). (2)  Obviamente, esses ícones não mantém viva a história da Igreja, como o faria um  museu do catolicismo (o que seria uma iniciativa correta). O que eles conservam  é o temor e o constrangimento. (3) Mesmo se a história pudesse ser narrada por  meio de cruzes e estátuas, será que a lembrança permanente dessa história é boa  para alguém? Não seriam os católicos os primeiros prejudicados de que sua  história fique conhecida?
Por  sinal, talvez por ignorância, não entendo muito esse fetichismo simbólico. Por  exemplo, se Cristo tivesse sido enforcado, em vez de crucificado (uma forma de  execução já conhecida na época), seus fieis carregariam “maquetes” de  cadafalsos?
Intolerância?
O  sentimento religioso é um fenômeno (positivo ou não) muito estendido e natural  em grande parte de nossa espécie. Ainda hoje, as pessoas que prescindem de  todo  tipo de fé religiosa, são minoria a escala mundial. De acordo com o  prestigioso Eurobarômetro da Comissão Européia, a proporção dos que acreditam em  alguma religião ou força transcendente, varia muito de um país a outro. Os  seguintes dados são de 2005.
Os  que não acreditam em deuses, nem em forças sobrenaturais, nem na vida eterna, em  fim, os céticos  incuráveis, perfaziam o 1% dos turcos, 6% dos portugueses, 6%  dos italianos, 18% dos espanhóis, 20% dos britânicos, 23% dos suecos, 25% dos  alemães, 27% dos holandeses e 33% dos franceses, para mencionar as  nacionalidades mais conhecidas para nós.
Os  ateus radicais são sempre minoria, atingindo um terço apenas na França, mas isso  não prova que o catolicismo seja esmagadoramente majoritário. Denominações  protestantes e correntes cindidas do catolicismo formam um grupo importante na  Europa. No entanto, a maioria das pessoas acredita em forças superiores,  destino, deuses, mesmo que não se submeta à disciplina de uma seita. Isto mostra  que, mesmo nos países mais desenvolvidos e educados, a existência humana gera  inquietações que nem a vida prática nem a ciência resolvem totalmente para todos  os habitantes..
Aliás,  o sentimento religioso, seja individual ou compartilhado, não precisa ser  alienante, desde que o sujeito o separe de suas decisões práticas (moral sexual,  idéias políticas, valores sociais), e não o confunda com fonte de conhecimento.  Imagino que, para alguém que acredita saudavelmente em entes sobrenaturais, deve  existir um prazer análogo ao que fornece o amor da família e dos amigos, o gosto  pela natureza e pelos animais, a solidariedade, a devoção por causas humanas, e  possivelmente, o deleite estético. (Por sinal, a crença de muitas pessoas,  inclusive de esquerda, de que o marxismo defende um “ateísmo científico” é  leviana. No marxismo, nem a religião nem o ateísmo são problemas científicos; o  combate à religião institucionalizada é estritamente social.)
Portanto,  é negativo (porém não surpreendente) que os bispos acusem aos autores do PNDH-3  de intolerantes . Se tivessem tido coragem, teriam proferido as palavras nas quais estavam  pensando: o plano deve ser considerado depravado, dissoluto, escandaloso,  lascivo, despudorado, solidário demais (muito além da caridade condicionada da  Igreja). De fato, o que eles criticam é  a tolerância do plano com as religiões não católicas.
Por  razões genuínas ou populistas (isso tanto faz), o plano pretende que também os  não católicos sejam respeitados e tratados como humanos.. É sadismo excessivo  que um favelado que foi tomado preso porque a polícia precisa manter seu  treinamento em tortura, seja ainda humilhado observando a tortura de Cristo, que  a Igreja atribui ao pecado original daquele pobre diabo.
A  exibição discreta por particulares de símbolos como cruzes, crescentes, estrelas  de David, mandalas, relicários com fotos de Chico Xavier, medalhas de Zoroastro,  e assim em diante é legítima. A imposição de símbolos soturnos em espaços  institucionais, onde algumas pessoas são constrangidas pela permanente lembrança  de que está fora daquela seita triunfante, é nada mais que agressão, tanto como a  burqa ou o chador.
Não  há dúvida que a ideologia nazista misturou, junto com o idealismo alemão e o  racismo, crenças religiosas cristãs e pagãs que acabaram dotando ao movimento de  certo perfil místico. Será que aceitaríamos que bairros habitados por nazistas  possam ter em suas prefeituras e outras instituições cruzes suásticas? Afinal,  antes de Hitler, essa cruz não era o símbolo da cobiça germânica, mas apenas uma  alegoria da pureza indostânica.
Carlos Alberto Lungarzo é professor e escritor, autor do livro "Os Cenários Invisíveis do Caso Battisti". Para fazer o download de um resumo do livro, disponibilizado pelo próprio autor, clique aqui. É membro da Anistia Internacional e colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?"