Evocação menor de Nelson Ferreira
Por Urariano Mota*
Recife (PE) - Pelo carnaval, em frente ao Cinema Império havia mulheres, meninos, homens, piratas, colombinas, vedetes, palhaços, toureiros, zorros, ursos, lança-perfumes, bisnagas, perfumes, promessas de corpos nus que não podíamos pegar. Havia um suor bom onde se colavam os confetes, umas peles abrasadas, uns sovacos mal raspados que eram em si mesmos fetiches do sexo, esbarrando-se num fogo que desejava a tudo queimar, arder até a alma pobre da gente. Toquem mais alto. Uma explosão de braços e pernas no frevo, uma multidão revolta, uma humanidade negra, mulata, branca, revoltada, que se anunciava, e não sabíamos: atenção, menino, atenção, infância: “nós passaremos”. Toquem mais alto! Acaso sabíamos que nem uma sombra de sêmen e amor restaria no corpo bom, imperioso, flamante daquela mulher endemoninhada? Que suas coxas não seriam eternas, sabíamos? Ah, mas pressentíamos, e gritávamos:
“ Cadê Mário Melo?
Partiu para a eternidade,
deixando em sua cidade
um mundo de saudade sem igual.
Foliões, a nossa reverência
à sua grande ausência do nosso carnaval...”
Esses compositores de frevo de Pernambuco tinham o dom de falar do sentimento da gente com uma voz que atravessava a parede de uma sala vizinha. Não somos nós que falamos, mas se referem ao que sentimos com tamanha intimidade que são essa maravilha ainda não descoberta: um parente amigo da infância com quem não brigamos, que tem crescido em nosso afeto, nutrido no tempo incessante. Vejam: estamos no Savoy, na Guararapes, e entre confetes de repente nos lembramos que iremos morrer. Que não mais seremos aqueles meninos de calças curtas, de calção, suburbanos. Que somos matéria vulgar, carne sem categoria da alma. Que estamos a um passo do merecido e absoluto esquecimento. Que amamos pouco e mal. Então sentimos que este mundo, o nosso mundo, acabou. É mal sem remédio, acabou, mas nem por isso nos conformamos. E porque não nos conformamos queremos o seu renascimento. Nem que seja pelo artifício da memória, a nossa última humanidade. Por isso, sem aviso nos damos as mãos e erguemos a voz:
“De braços para o alto,
cabelos desgrenhados,
frevando sem parar
lá vem Mário...”
A gente diz Mário para não dizer nossos próprios nomes. Vamos ao passado e de lá nos projetamos. Sinto que deve haver, há uma razão para que os frevos de bloco sejam nostálgicos. Nostálgicos? Disse nostálgicos e emendo. Não é uma saudade mórbida do que se foi. Não é o desejo de voltar ao passado para ali se aninhar e de lá nunca mais sair. Não é, enfim, uma reencarnação no corpo do que um dia fomos, como se fôssemos um médio espírita em crises recidivas de encarnação debilóide. Não. Nós voltamos, mas com a compreensão do presente. Se houvesse liberdade num escrito que se dirige ao grande público, eu diria com outras palavras que desejamos ter o falo grande com a irresponsabilidade e descompromisso da infância. Mas com a sensibilidade e inteligência amadurecidas. Porque no fundamental é isto: a busca de uma felicidade impossível. Ah se pudéssemos realizar no presente os desejos do que não pudemos ter! Os beijos que não demos, os carinhos a que um dia aspiramos, a fruta madura que se abriu deiscente para nós, e que, malditos estúpidos, não abraçamos! É por isso que no bar Savoy, o poeta Carlos Pena dizia que o refrão tem sido assim:
“São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.”
Com o coral de Batutas de São José, imaginem então, se não puderem ouvir. Porque desejo dizer que houve uma vez, no carnaval de 1957, um menino perdido em meio à multidão do largo de Água Fria. Ele nem sequer se identificava no seu nome. Depois houve outra vez, outro menino, no carnaval de 1958. E outro em 1959, em 1960, até este 2010, quando volta a ser aquele magriço com um sentimento sem palavras, de olhos graúdos, somente ossos e olhos. Atingido por este feitiço da Evocação n˚. 1: “Felinto, Pedro Salgado,
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas,
Pirilampos, Apois-Fum,
Dos carnavais saudosos?
Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante..’
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia....”
Então vêm os acordes, letais. Que em letras de fogo deveriam estar gravados.
*Urariano Mota é jornalista e escritor. Autor do livro "Soledad no Recife", recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do Cabo Anselmo, executada pela equipe de Fleury com o auxílio de Anselmo. É colunista do site "Direto da redação" e colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?"
Um comentário:
estes frevos estao no meu coraçao, qdo minha mae faleceu eu escutei capiba em homenagem a ela que sempre estava cantando os antigos frevos, que por diversos motivos não os dancei mas sempre os escuto.
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