Arnaldo Jabor e eu: quem é o boçal?
Por Raul Longo*Eu, claro. Afinal, ainda que filho de operária, me tornei um classe-média. E o Arnaldo Jabor conhece muito da contumaz boçalidade da classe média.
A meu ver Jabor fez um único filme realmente notável: "Tudo Bem". Mas é tão bom que apesar da produção posterior do que chamou “trilogia do apartamento” ser de enredo paupérrimo e péssima direção, “Tudo Bem” justifica o longo aprendizado de Jabor sobre a classe média brasileira.
“Tudo Bem” é um verdadeiro tratado sobre a incapacidade de raciocínio e de percepção da realidade que o circunda, pelo cidadão comum de classe média. Mas a concepção farsista de nossa pequena-burguesia sobre o país e sobre si mesma, já despertara a atenção do Jabor há muito mais tempo, como se verifica em seu primeiro longa-metragem de 1967: “A Opinião Pública”. Um documentário onde, através de um mosaico de depoimentos, Jabor possibilita à própria classe média a exposição de seu empedernido atrasismo fascistóide e moralista, ao apoiar a ditadura militar instaurada pelo golpe de 64.
Em sua primeira produção ficcional, “Pindorama” de 1970, através de alegórica representação da irracionalidade e alienação da classe média através de uma personagem feminina viciada e manipulada pela Igreja, Militares, Políticos e o poder econômico dos verdadeiros burgueses; Jabor transpõe a atualidade dos anos 60 ao Brasil do século XVI.
Todo esse interesse e análise desenvolvida ao longo de uma década de críticas mordazes e profundas, em 1978 se concretizam em um dos mais atilados tratados sociais já produzidos sobre o segmento médio dos estratos sociais brasileiro, o “Tudo Bem”.
Nem da Casa Grande nem da Senzala, sempre excluída e menosprezada pelos clãs dos Donos do Poder, a classe média nunca mereceu maiores atenções de nossos mais destacados historiadores, cientistas e analistas sociais. Até mesmo os modernistas que dela se originaram, não dedicaram mais do que breves ironias. E os que alguma vez tentaram enaltecê-la, nunca superaram as rimas pobres como aquelas das “bandeiras de 13 listas que marcam conquistas de paulistas trabalhistas”.
Além de Machado de Assis no início do século passado e de Nelson Rodrigues nos meados, só Roberto Carlos e sua turminha da jovem guarda buscaram interpretar as pequenezes e comezinhas vicissitudes desta classe que nunca se destacou por nenhum maior envolvimento com o país e seu povo. Apenas deixaram se enganar por duas campanhas promovidas por Assis Chateaubriand, entregando relíquias familiares e acreditando no Ouro Para o Bem do Brasil (que o Brasil nunca viu) e a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em prol da ditadura militar.
Interessaram somente aos publicitários e estrategistas comerciais que chegaram a contratar os irmãos Paulo e Marcos Vale para compor um hino ao “Corcel cor de Mel e o Mustang cor de sangue”, e ao marketing da ditadura que versou o “America love or leave” para “Brasil ame-o ou deixe-o”, ao que seus integrantes que ainda preservavam algum senso crítico completavam com “E o último a sair apague a luz do aeroporto”.
Ridicularizada por si mesma e menoscabada pelas esquerdas, mais interessadas nas classes produtivas em cultura ou em contribuições ao desenvolvimento da civilização brasileira; é essa pobre classe média que Jabor denuncia em “Tudo Bem” como sintoma de um capitalismo tardio; cruelmente tratando-a como bocas inúteis a serem alimentadas pelos que ela despreza e ocupante de espaços adaptados para conter o vácuo, o vazio, o nada.
O filme resgata de Lima Barreto a ironia às inócuas boas intenções de um Policarpo Quaresma adaptado e reinterpretado por Paulo Gracindo em anacrônica preservação do Integralismo, contracenando com a divina Fernanda Montenegro reproduzindo uma patética esposa incapaz de incluir-se na própria realidade, mas ridiculamente disposta a ensinar sobre o que não consegue ver e sequer ter qualquer noção do que seja.
Antes da instalação da primeira indústria automobilística brasileira Noel Rosa já reclamara da operária que atendia ao apito da fábrica, embora surda à buzina de seu carro. E Newton Mendonça fotografou numa alemã Roleiflex a ingratidão composta pelo Jobim e cantada pelo João Gilberto; mas analisar, estudar, descobrir os medos, os segredos, inseguranças, vazios... Os pequenos engodos que utiliza para enganar-se a si mesma e as vãs fantasias cotidianas, ninguém antes reproduziu tão bem quanto o Jabor.
Se alguém descobrir alguma razão para conhecer em profundidade essa grande falácia que é a pequena burguesia urbana brasileira, não terá como fugir. Obrigatoriamente haverá de consultar a obra do cineasta, pois assim como não se conhece o sertanejo sem ler Guimarães Rosa, não é possível conhecer nossa classe média sem Jabor.
Mas a questão que resta é que enquanto o sertanejo continua sendo uma matéria riquíssima, seja para o teatro e a literatura de um Ariano Suassuna, para a música de um Elomar, ou o espetáculo de um Antônio Nóbrega; qual a utilidade de todo o conhecimento que Jabor reuniu sobre a classe média?
Para o próprio Jabor não teve nenhuma, pois quando se deu conta das restrições de conteúdo de seu objeto de estudo e resolveu tirar proveito com algum retorno financeiro, é que acabou quebrando a cara.
Ao explorar as emoções baratas da classe média através de suas típicas crises existenciais e conseqüentes reflexos sexuais, tudo o que fez foi produzir dois fracassos brochantes: “Eu te Amo” em 1980 e “Sei que vou te amar” em 1986.
Tim Maia, emérito frasista, dizia que o Brasil é o único país onde traficante se vicia e prostituta se apaixona pelo freguês. Quando Chico Anísio casou com a Zélia Cardoso, o Macaco Simão da Folha de São Paulo completou a relação com o humorista que casa com a piada. No caso do Jabor, podemos adicionar o intelectual que se tornou tão estúpido quanto a estupidez que ironizou. Como Jabor foi cometer a burrice de tentar ganhar dinheiro com a classe média brasileira reproduzindo a própria nulidade desse grupo social, é incompreensível. Como, apesar de duas décadas de estudos e análises, não percebeu que a colonizada classe média brasileira desconhece e despreza a si mesma, apenas reconhecendo e valorizando sua congênere estadunidense, por mais idênticas que sejam.
O vazio é o mesmo, o mesmo nada, mas com uma diferença fundamental: a classe média norte-americana, conhecida como “maioria silenciosa”, ainda que silenciosa é muito orgulhosa de si: do seu chiclete, da sua coca-cola, dos seus carros, do seu sanduíche e de sua calça jean. A brasileira tem o mesmíssimo orgulho, mas do chiclete, coca-cola, carros, sanduíches e jeans deles, dos norte-americanos.
Difícil imaginar de onde o Jabor tirou que os brasileiros médios dariam o mesmo valor para uma porcaria de filme produzido aqui, que dão às porcarias de filmes produzidos lá; mas nem por isso se pode dizer que Jabor seja um boçal.
Não! Pois apesar do fracasso como cineasta, Jabor logo descobriu outra forma de utilizar seus conhecimentos sobre a boçalidade da classe média brasileira, colocando-os a serviço do maior grupo de comunicação do país. Deu um pouco de azar, coitado, pois resolve fazer isso justo quando o tal grupo inicia um processo de decadência e perda de público, mas isso Jabor não tinha como imaginar, porque apesar de seu convívio com Glauber Rocha, de povo ele entende muito pouco ou praticamente nada.
Ainda assim, e graças as suas pontas no jornalismo da Globo, as madeixas do Jabor conseguiram algum sucesso entre as senhoras da mesma classe que ele tanto desprezou, ironizou, satirizou e menoscabou através de seus longa-metragem.
Foi o também cineasta César Cavalcanti quem me chamou a atenção para o detalhe da cor da gravata diária no Jabor na TV: vermelha! E vermelha continuou cotidianamente desde a vitória eleitoral de Luís Ignácio Lula da Silva, até o anúncio da indicação de Gilberto Gil para o Ministério da Cultura. Talvez um pouco mais, na esperança de biscoitar algum alto cargo de confiança, mas a medida que o estafe se definiu em todo o Ministério, Jabor mudou de vez a cor da gravata e, de lá pra cá, não há o que o faça perdoar Lula. E nem deve! Pois se não for o que recebe dos Marinhos pra falar mal do governo Lula, vai viver do quê?
Difícil a situação do Jabor! Mas não se pode dizê-lo boçal, afinal está tirando algum proveito de tantas décadas de áridas análises e estudos sobre a classe média. Boçal sou eu que tento demonstrar a essa mesma classe média quanto o Jabor a trata como fruto da mais pura e refinada boçalidade.
Reconheço que sou boçal, pois jamais o típico pequeno-burguês do Brasil será capaz de enxergar algum valor em sua gente, em seu país, em sua história e em si mesmo. Muito pelo contrário! Sente-se afagado pelo William Bonner quando confessa que faz jornal para Hommer Simpsons, o personagem idiota do famoso seriado animado dos norte-americanos. Idiotas, sim, mas idilicamente idiotas norte-americanos!
Lembrando disso é que me contive quando vi o Jabor comentando a notícia do outro, o William Waack, culpando o Presidente Lula – evidentemente! – pela morte do prisioneiro cubano. Dizia a notícia que o presidente brasileiro negligenciara um pedido por sua intervenção, emitido pelo grupo do Orlando Zapata Tamayo de dento da prisão.
Aí aparece Lula negando ter recebido tal pedido, afirmando que se houvesse recebido até conversaria a respeito com os mandatários cubanos, mas que não fora protocolado. E então, para meu espanto, surge o Jabor especulando sobre a desumanidade do Lula ao exigir que o moribundo Zapata, fraco e com fome, ainda protocolasse o tal pedido.
Naquele momento não me contive e considerei o Jabor um boçal por desconhecer que qualquer pessoa que pretenda se dirigir por escrito a uma autoridade de onde for no mundo, terá de fazê-lo através de um registro protocolar, exatamente para preservar o direito de comprovar a intenção de se comunicar com a autoridade.
Se sou mal atendido por um assessor de serviço público e pretendo me queixar com seu titular, não adianta pôr uma cartinha no correio, pois o secretário, diretor ou o que seja, simplesmente poderá alegar que a missiva não lhe foi entregue. Jabor pode até cogitar que o governo cubano não entregou o pedido ao protocolo da embaixada brasileira, mas em meu imediato entender proferiu evidente boçalidade ao cogitar sobre desumana exigência burocrática a um moribundo em greve de fome. Afinal quem protocola não é o que emite o comunicado e, sim, o órgão que o recebe.. Assim se atesta o recebimento de qualquer documento ao longo da história.
Muito fácil qualquer um dizer que entregou um documento a Lula, mas somente aquele que apresentar o protocolo de recebimento desse documento pela chancelaria de Lula poderá prová-lo. Qualquer pessoa com um mínimo de informação sabe disso e só o ignoram os muito desinformados ou boçais.
Mas então me lembrei da filmografia do Jabor. Lembrei quanto conhece bem de seu público, quanto sabe de suas fantasias e da facilidade de sugestioná-lo. Jabor sabe com o que e com quem está lidando, afinal passou quatro décadas analisando, documentando e ridicularizando a pasmaceira daqueles que hoje o adoram.
Não! Sem nenhuma sombra de dúvida, Jabor não é um boçal. Está ganhando para fazer o que faz.
Boçal sou eu que, sem ganhar coisa alguma, fico aqui perdendo meu tempo na tentativa de impedir que a classe média seja tratada tal qual é afeita, acostumada, e com tanto gosto e enrosco.
*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis (SC), onde mantém a pousada "Pouso da Poesia". É colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?".
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