O cafofo da Rua da Instalação
Qual foi o papo que esse gringo de Boston engrenou pra convencer nossas mulheres, inclusive menores de idade, a ficarem peladas? A Ciência. Tudo em nome da ciência.
Qual foi o papo que esse gringo de Boston engrenou pra convencer nossas mulheres, inclusive menores de idade, a ficarem peladas? A Ciência. Tudo em nome da ciência.
Mulheres da alta sociedade amazonense  – mães, esposas e filhas, inclusive menores de idade – posaram completamente  nuas ou seminuas para o jovem ‘fotógrafo’ americano Walter Hunnewell, num  estúdio improvisado situado em prédio antigo da Rua da Instalação, no centro da  cidade de Manaus. Uma dessas sessões foi presenciada por seu colega, William  James, garotão de porte atlético, de 23 anos, que confessou: - “Aparentemente refinadas, de  qualquer modo não libertinas, as mulheres consentiram que se tomassem com elas  as maiores liberdades e duas delas, sem muito problema, foram induzidas a se  despir e posar nuas”. 
No momento em que terminava a sessão,  o estúdio recebeu a visita de um conhecido deputado - não foi o Lupércio - que  viu as roupas das meninas ainda espalhadas pelo chão. Também um engenheiro  militar, o major João da Silva Coutinho, tomou conhecimento da existência de  mais de 100 fotos com mulheres despidas de frente, de costa e de perfil, mas  preferiu se calar. A Polícia registrou o fato, conforme ofício n˚ 787 expedido  em 24 de outubro. O escândalo foi abafado. A imprensa não deu um pio. 
Depois de todo esse tempo, o Diário  do Amazonas rompe o silêncio aqui nessa coluna para não ser acusado de  cumplicidade e omissão. É o primeiro jornal amazonense a tocar no assunto. Não  gosto de fofoca não, mas - como diz o outro - não sou baú nem cofre para guardar  segredo. Por isso, me sinto na obrigação de passar adiante essa história  apimentada. Vi as fotos e me pergunto como é que senhoras de boa família  aceitaram exibir suas intimidades para um desconhecido que nem sequer é  fotógrafo? 
Fotógrafo de  araque
Walter Hunneweel não é fotógrafo nem  aqui nem na China. Antes de vir ao Brasil, nunca havia tirado uma foto. Não  passa de um playboyzinho, filho de um milionário, que por causa disso foi aceito  como voluntário em uma expedição científica chefiada pelo seu professor na  Universidade de Harvard, Louis Agassiz, um suíço naturalizado americano,  especializado em ictiologia, cujo objetivo declarado era coletar, nos rios e  igarapés de Manaus, pacu, bodó, piranha e outras espécies novas. 
Mas quem caiu na rede foi outro tipo  de peixe. Em vez de pescar, “o Sr. Agassiz passa metade do dia trabalhando  com seu amigo Sr. Hunnewell, tirando fotografias de habitantes locais” –  registra o diário da expedição. Professor e discípulo armaram seu cacuri num  velho prédio da Rua da Instalação, onde antes funcionava uma repartição pública.  “O salão fotográfico era um ambiente carregado de aura erótica e, de modo  significativo, destituído de qualquer conteúdo científico” – diz o  pesquisador John Monteiro, nascido em Minnesota e atualmente professor da  UNICAMP. 
Na viagem de barco a Manaus, a  máquina fotográfica quebrou e foi consertada em Santarém por um lambe-lambe  mocorongo. “Hunneweel possuía um conhecimento técnico deficiente e um  equipamento precário” e, em consequência, “as imagens são de baixa  qualidade e de gosto duvidoso” e se situam “numa região incomoda entre a  fotografia científica e erótica”, conforme avaliação de John Monteiro e de  sua colega da USP, Maria Helena Machado, que analisaram as fotos. 
Que Deus perdoe minha maledicência -  trata-se apenas de uma coincidência - mas o fotógrafo de araque nasceu em  Boston, a pátria da padrofilia, cujo arcebispo, Bernard Law, foi afastado e  responde a mais de 450 processos judiciais, sob a acusação de ter encoberto  abusos sexuais cometidos por padres católicos contra crianças. Qual foi o papo  que esse gringo de Boston engrenou pra convencer nossas mulheres, inclusive  menores de idade, a ficarem peladas? A Ciência. Tudo em nome da  ciência.
Papo cabeça
A expedição percorreu o Brasil  durante os anos 1865 e 1866, com o objetivo maior de provar que a teoria da  evolução de Darwin era furada. Agassiz defendia o criacionismo e condenava  ferozmente a mestiçagem a quem atribuía a responsabilidade pela “degeneração da  raça humana”. Queria produzir documentos visuais sobre as origens étnicas e as  variedades dos tipos mestiços. Para isso, fotografou no Rio e em Manaus tipos  étnicos nus com o objetivo – segundo ele – de fazer comparações somáticas.   
Havia ingenuidade nas mulheres que  posaram nuas? Elas ficaram impressionadas com o prestígio dos ‘pesquisadores’  que pertenciam à Universidade de Harvard? O estudante William James, que fez  parte da expedição, dá interessante depoimento em seu diário  íntimo:
“Eu fui, então, para o  estabelecimento fotográfico e lá fui cautelosamente admitido por Hunneweel com  suas mãos negras  (manchadas no processo químico). Ao entrar na sala, encontrei o prof.  (Agassiz) ocupado em persuadir 3 moças, às quais ele se referia como  sendo índias puras, mas as quais eu percebi, como mais tarde se confirmou, terem  sangue branco. Elas estavam muito bem vestidas em musselina branca, tinham joias  e flores nos cabelos e exalavam um excelente perfume de  priprioca”.
John Monteiro escreve que essa  “operação estava sendo conduzida em segredo, o que destoava das afirmações do  professor Agassiz a respeito da compilação de uma valiosa série de imagens  científicas que serviriam de base para um estudo sério”. Foi no final da  sessão que chegou o deputado Tavares Bastos, estudioso da região e autor do  livro “O Vale do Amazonas”. Sujeito decente, o parlamentar se escandalizou com o  que viu: “Ele me perguntou ironicamente se eu estava vinculado ao Bureau  D’Anthropologie” – comenta William James.
John Monteiro acha – e nós  concordamos – que é difícil acreditar que o fato não tenha causado algum tipo de  mal-estar na sociedade manauara. Ele cita um ofício da Polícia de 24/10/1865,  dando conta da chegada da expedição em Manaus. Um escândalo, logo abafado, pode  ter brotado, o que talvez tenha contribuído para o desligamento de W. James da  expedição. Escreve John Monteiro:
- “A imprensa local manteve o  silêncio em torno das atividades do ‘sábio Agassiz’, enquanto os outros  participantes da expedição - inclusive o major João Martins da Silva Coutinho -  não deixaram nada escrito sobre o estúdio fotográfico”.
  
Dessa forma, foram apagadas as  aventuras fotográficas desse desacreditado cientista, defensor de teorias  racistas e pioneiro do apartheid.  As fotos, conservadas em chapas de  vidro, ficaram um século e meio perdidas num armário sem uso no sótão do Museu  Peabody de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard. Muitas delas  continuam inéditas. Outras foram publicadas agora em 2010, durante a 29ª. Bienal  de São Paulo, num livro organizado por Maria Helena Machado e Sasha Huber, uma  suíça de origem haitiana engajada na luta antiracista. Trata-se, agora, de uma  luta pela memória. 
Lugar de memória
Desacreditado como cientista por  causa de suas equivocadas teorias, nem por isso Agassiz deixou de ser cultuado.  Monumentos, montanhas, ruas, avenidas e praças em várias cidades do mundo levam  hoje o seu nome. No Alpes suíços tem um pico chamado Agassiz; no Rio de Janeiro,  na Floresta da Tijuca, tem a Pedra de Agassiz e as Furnas de Agassiz, além de  uma praça Agassiz e uma rua Agassiz no subúrbio carioca. Em Belo Horizonte, no  bairro Floresta, existe uma rua com esse nome. E por ai vai.
O historiador suíço Hans Fassler,  autor de um livro sobre o envolvimento do seu país com a escravidão, achou  intolerável a homenagem e criou a campanha “Desconstruindo Agassiz”, que briga  para renomear o pico Agassiz com o nome de uma de suas vítimas, um escravo  afroamericano chamado Renty. Hans e Sasha conheceram Helena Machado e  John Monteiro num seminário internacional organizado na UNIRIO em agosto de  2009.  Daí nasceu a idéia do livro que além dos quatro autores recebeu a  contribuição dos pesquisadores Flávio Gomes, Suzana Milevska e Petri  Saarikko.
Maria Helena percorreu os arquivos e  museus da universidade, localizou e analisou o conjunto da documentação relativa  à expedição de Agassiz que permite discutir uma série de questões estratégicas  para a compreensão do Brasil na segunda metade do século XIX, tais como os  interesses norte-americanos na Amazônia, a livre navegação pelo rio Amazonas, os  projetos dos Estados Unidos de enviar a população afro-americana para povoar a  região, a proibição do tráfico internacional de escravos e o debate sobre raça e  ciência. 
P.S. – Quem quiser saber mais, leia o livro de Maria  Helena Machado e Sasha Huber (orgs) “Rastros e raças de Louis Agassiz:  fotografia, corpo e ciência, ontem e hoje” São Paulo. Capacete. 2010. (Edição  bilingue da 29ª. Bienal de São Paulo).
*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blog “Taqui pra ti” e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.


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