Nota do QTML?: O texto abaixo já é bem antigo, mas, por se encaixar perfeitamente na proposta deste blog, me foi sugerido recentemente por Appólo Natali, jornalista. O texto é do escritor Rubem Alves, atualmente professor da Unicamp. Vale leitura e reflexão.
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A que ponto chegamos?
A que ponto chegamos?
Por Rubem Alves*
“Vejam só a que ponto chegamos. Agora ele está querendo ser presidente. Não se enxerga? A começar pelos ancestrais, que não são coisa que se recomende. Há fortes boatos de descender de uma mulher de costumes frouxos e suscetível a amores proibidos. O pai, ao que parece,não conseguiu se fixar em emprego algum e alguns chegam mesmo a descrevê-lo como tendo alma de vagabundo. É certo que não seria nunca escolhido como operário padrão.E que dizer do lugar onde nasceu? Estado dos mais atrasados, sotaque típico, crescido em meio à rudeza dos que não se refinaram para as lides públicas. Podem imaginar o seu comportamento num banquete? Seria vergonhoso, cotovelos sobre a mesa, empurrando a comida com o dedão, falando de boca cheia. Seria um vexame nacional. Acresce o fato de não haver nem mesmo terminado o curso primário, sua educação formal se restrigindo a ler, escrever e fazer as quatro operações. Como trabalhador braçal, excelente. Na verdade, ali é o seu lugar. Como acontece com as pessoas que trabalham muito com o corpo e pouco com a cabeça, seu corpo se desenvolveu de forma invejável.Testemunhas oculares relatam mesmo que, em certa ocasião,não vacilou em se valer dos seus músculos para dobrar um grupo de adversários.
Mas, o que assusta mesmo, é o seu radicalismo em relação às questões do trabalho, especialmente no campo. Pois não é da iniciativa e do capital dos patrões que vêm a riqueza do país? E agora este matuto quer colocar o carro na frente dos bois. Se sua política agrária for colocada em prática é certo que vamos ter uma convulsão social no País. O nosso sistema de produção vai se desmantelar, com imprevisíveis conseqüências sociais. No final, parece que os empregados tomarão conta de tudo e ao patrões não resta outra alternativa que deixar o País. “Love it or leave it”.
Podem guardar seus sorrisos e sua raiva porque isto que escrevi não é sobre quem vocês estão pensando. É sobre Abraham Lincoln. E o que eu disse sobre sua vida pode ser encontrado na Enciclopédia Britânica, para quem quiser conferir. Imaginei como é que a conversa rolaria nas rodinhas das UDRs, KKK’s da época, ante a insólita possibilidade de que um ex-lenhador sem curso primário viesse a ser o presidente do país. Como se sabe, Lincoln foi eleito, os escravos libertados, houve uma enorme convulsão social, pois os donos de escravos se recusaram a aceitar a liberdade dos negros e aqueles que não se ajustaram cumpriram sua promessa: emigraram. Para onde? Muitos para o Brasil. E foi assim que nasceram as cidades de Santa Bárbara do Oeste e Americana. Por que o Brasil? Porque, se não podiam ter escravos lá, poderiam continuar a ter escravos aqui. Nunca imaginei que esta seria uma boa razão para se optar pelo Brasil: para se continuar a ter escravos.
Mas os tempos mudaram. Mudaram? Parece que ainda hoje o mesmo horror existe ante a possibilidade de que um operário venha a ser presidente do País. E as conversas que rolam por aqui não devem ser muito diferentes das que rolaram por lá. Parece que a história está cheia de situações parecidas – e é só por isto que podemos aprender dela.
Quem sabe a memória do ex-lenhador que se candidatou a presidente dos Estados Unidos possa nos ajudar a colocar em perspectiva este fato insólito de um operário que se candidata à Presidência do Brasil.
*Rubem Alves é escritor e professor da Unicamp.
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