Por Urariano Mota (*)
Recife (PE) - De Raquel deve ser dito que se não fosse ela, todos que fomos à sua casa poderíamos hoje estar mortos. Ela, viúva, louca e desfrutável para os nossos corações, somente para os nossos corações de esperança e mais nada, doou a sua granja para encontros clandestinos da organização Ação Popular.
Quanto eram solitários, desertos e secos de tudo aqueles anos. Essa mulher, que foi combustível de nossa imaginação, também cozinhava como uma feiticeira, e produzia umas galinhas caipiras, e temperava um arroz natural, e, achando pouco, gargalhava e sorria conosco, não sei se por um instinto de perversão, de serena crueldade, porque, mais velha que nós, e sendo por natureza, formação e vontade fêmea, devia adivinhar o efeito do seu riso aberto. Nós então sorríamos também, sorríamos muito, sorríamos até de nervoso, mas sorríamos, como quem diz, vamos sorrir, porque talvez amanhã os nossos risos sejam apenas os dentes.
Lembro que a conheci duas vezes. Na primeira, ela foi apresentada por Tonhão, o negro mais alto e irresponsável que os nossos olhos já viram. Tonhão, de batismo Antonio Agostinho, era um homem bom, sei agora. Sei porque só a generosidade poderia apresentar a pessoa amorável de Raquel. Claro, nisso havia também exibicionismo, para nos mostrar a mulher que ele poderia ter. O futuro do pretérito então era um remoto futuro do presente.
Dessa primeira vez, um domingo, levamos para a granja algumas cervejas e fome, fome de tudo, que nada tínhamos de mais natural naqueles tempos. Os selvagens chegaram, Raquel podia nos ter dito. Mas não. Recebeu-nos como as pessoas mais ricas e importantes em um domingo. Arroz da terra, feijão que parecia pular do chão a nossos pés, galinha ao molho de um modo que não é misericordioso lembrar. E redes. E conversas. E música de Baden Powell, que Fernandão pôs no que ele considerava o seu carro e casa da época, pelo sacrifício com que o conseguira: um toca-discos Philips, portátil, que transformava qualquer merda de vida em paraíso. Lembro que Tonhão bebia, piscava um olho para Raquel, que, maliciosa, não o desesperançava, nem tampouco o incentivava para um passo adiante, e sorria. Nós todos acompanhávamos essa corte como se fôssemos marinheiros de reserva, prontos a substituir o nosso almirante negro.
É interessante notar que Raquel nos acordava a esperança de possuí-la sem qualquer recurso vulgar, decotes (talvez, murmura o diabo, porque os seios já não fossem assim tão plenos), ou uma saia mais curta, porque ela batia-se por uma moral libertária nada Mary Quant. Ela nos acendia pela pessoa que era, pelo que adivinhávamos das reticências da sua fala e liberdade. Mas isso conhecemos à distância, quando temos infinita melhor paciência. Vale dizer, o decréscimo do vigor que fodia até borboletas.
Na segunda vez, foi a “trabalho”. Estávamos em um encontro da União Brasileira de Estudantes Secundaristas. Não pensem por favor que sou humorista. Eu era o segurança. Eu estava ali para cuidar da segurança de todo o grupo. Melhor, éramos dois seguranças, eu e Spinelli. Alto, magro e com habilidade para uma corrida de tartarugas, Spinelli era o parceiro ideal para sondar o horizonte, se fascistas e exércitos nos assaltassem. Que armas tínhamos? – Os olhos. Que instrumentos de prospecção possuíamos? – Eu, um livro de Hemingway, Paris é uma festa (“Esse cara é revolucionário, lutou na Guerra Civil da Espanha”, eu dizia), Spinelli, um volume de Lukács, cuja luz devia iluminar a nossa vigilância. Posto de observação? – Duas redes, que balançavam e eram boas, na fresca das matas da tarde.
Súbito, percebi algo a se mover. Um ser magro e pequeno como ave avançava por entre as árvores. Eu sabia que era Geraldo Sobreira, mais conhecido pelo honroso nome de Galo Cego. Ele assim se chamava por causa da miopia profunda e pela forma de galo magro e sem pelo. Por isso, de brincadeira, anuncio ao outro segurança:
- Atenção. Um cego sobe o caminho.
Ao ouvir isso o segurança corre, à sua maneira corre, para anunciar ao grupo que discutia a luta contra a ditadura:
- Um cego! Cuidado! Um cego vem aí!
Essas coisas vêm quando lembro a pessoa de Raquel, a quem todos amávamos, de uma forma carnal ou idealizada. Raquel, a viúva, a quem tanto devemos, até mesmo a vida. É triste, esta é a nota final, que pessoas tão indispensáveis quanto ela jamais recebam um agradecimento, um busto, uma página, quando falamos dos grandes vultos que amargaram e sonharam a revolução.
*Urariano Mota é jornalista, professor de português e escritor. Autor do livro “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do Cabo Anselmo, executada pela equipe de Fleury com o auxílio de Anselmo. Urariano é pernambucano, nascido em Água Fria e residente em Recife. É colunista do site “Direto da redação” e colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”
=> Artigo publicado originalmente no site "Direto da Redação"
Quanto eram solitários, desertos e secos de tudo aqueles anos. Essa mulher, que foi combustível de nossa imaginação, também cozinhava como uma feiticeira, e produzia umas galinhas caipiras, e temperava um arroz natural, e, achando pouco, gargalhava e sorria conosco, não sei se por um instinto de perversão, de serena crueldade, porque, mais velha que nós, e sendo por natureza, formação e vontade fêmea, devia adivinhar o efeito do seu riso aberto. Nós então sorríamos também, sorríamos muito, sorríamos até de nervoso, mas sorríamos, como quem diz, vamos sorrir, porque talvez amanhã os nossos risos sejam apenas os dentes.
Lembro que a conheci duas vezes. Na primeira, ela foi apresentada por Tonhão, o negro mais alto e irresponsável que os nossos olhos já viram. Tonhão, de batismo Antonio Agostinho, era um homem bom, sei agora. Sei porque só a generosidade poderia apresentar a pessoa amorável de Raquel. Claro, nisso havia também exibicionismo, para nos mostrar a mulher que ele poderia ter. O futuro do pretérito então era um remoto futuro do presente.
Dessa primeira vez, um domingo, levamos para a granja algumas cervejas e fome, fome de tudo, que nada tínhamos de mais natural naqueles tempos. Os selvagens chegaram, Raquel podia nos ter dito. Mas não. Recebeu-nos como as pessoas mais ricas e importantes em um domingo. Arroz da terra, feijão que parecia pular do chão a nossos pés, galinha ao molho de um modo que não é misericordioso lembrar. E redes. E conversas. E música de Baden Powell, que Fernandão pôs no que ele considerava o seu carro e casa da época, pelo sacrifício com que o conseguira: um toca-discos Philips, portátil, que transformava qualquer merda de vida em paraíso. Lembro que Tonhão bebia, piscava um olho para Raquel, que, maliciosa, não o desesperançava, nem tampouco o incentivava para um passo adiante, e sorria. Nós todos acompanhávamos essa corte como se fôssemos marinheiros de reserva, prontos a substituir o nosso almirante negro.
É interessante notar que Raquel nos acordava a esperança de possuí-la sem qualquer recurso vulgar, decotes (talvez, murmura o diabo, porque os seios já não fossem assim tão plenos), ou uma saia mais curta, porque ela batia-se por uma moral libertária nada Mary Quant. Ela nos acendia pela pessoa que era, pelo que adivinhávamos das reticências da sua fala e liberdade. Mas isso conhecemos à distância, quando temos infinita melhor paciência. Vale dizer, o decréscimo do vigor que fodia até borboletas.
Na segunda vez, foi a “trabalho”. Estávamos em um encontro da União Brasileira de Estudantes Secundaristas. Não pensem por favor que sou humorista. Eu era o segurança. Eu estava ali para cuidar da segurança de todo o grupo. Melhor, éramos dois seguranças, eu e Spinelli. Alto, magro e com habilidade para uma corrida de tartarugas, Spinelli era o parceiro ideal para sondar o horizonte, se fascistas e exércitos nos assaltassem. Que armas tínhamos? – Os olhos. Que instrumentos de prospecção possuíamos? – Eu, um livro de Hemingway, Paris é uma festa (“Esse cara é revolucionário, lutou na Guerra Civil da Espanha”, eu dizia), Spinelli, um volume de Lukács, cuja luz devia iluminar a nossa vigilância. Posto de observação? – Duas redes, que balançavam e eram boas, na fresca das matas da tarde.
Súbito, percebi algo a se mover. Um ser magro e pequeno como ave avançava por entre as árvores. Eu sabia que era Geraldo Sobreira, mais conhecido pelo honroso nome de Galo Cego. Ele assim se chamava por causa da miopia profunda e pela forma de galo magro e sem pelo. Por isso, de brincadeira, anuncio ao outro segurança:
- Atenção. Um cego sobe o caminho.
Ao ouvir isso o segurança corre, à sua maneira corre, para anunciar ao grupo que discutia a luta contra a ditadura:
- Um cego! Cuidado! Um cego vem aí!
Essas coisas vêm quando lembro a pessoa de Raquel, a quem todos amávamos, de uma forma carnal ou idealizada. Raquel, a viúva, a quem tanto devemos, até mesmo a vida. É triste, esta é a nota final, que pessoas tão indispensáveis quanto ela jamais recebam um agradecimento, um busto, uma página, quando falamos dos grandes vultos que amargaram e sonharam a revolução.
*Urariano Mota é jornalista, professor de português e escritor. Autor do livro “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do Cabo Anselmo, executada pela equipe de Fleury com o auxílio de Anselmo. Urariano é pernambucano, nascido em Água Fria e residente em Recife. É colunista do site “Direto da redação” e colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”
=> Artigo publicado originalmente no site "Direto da Redação"
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