A participação das mulheres no primeiro escalão do governo da presidente Dilma pode ser creditada à luta de ativistas como Heloneida. Ambas, embora com perspectivas distintas, partilham a mesma poética do espaço. Em algum ponto de equilíbrio, o vento leste do saguão sopra no Palácio do Planalto. Dilma e a doce cearense finalmente se encontraram.
Por Gilson Caroni Filho (*)
Um sopro de vento percorreu o saguão da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, onde, na tarde de 3 de dezembro de 2007, foi velado o corpo da parlamentar, jornalista, escritora e ativista Heloneida Studard. Três anos antes da eleição da primeira mulher para a Presidência da República, o Brasil perdeu uma militante que sempre agiu a descoberto, cabeça erguida no espaço das intempéries, desdenhando, com um humor desconcertante, os que a ela se opunham nas diversas frentes em que combateu.
O feminismo de Heloneida, como ação política concreta, englobava teoria, prática e ética, tomando a mulher como sujeito histórico de transformação da sua própria condição social. Sabia que a luta pela emancipação feminina, e pela afirmação de todos os seus direitos à igualdade com o homem, é uma das grandes causas da nossa época. Ao abraçá-la, rejeitou falácias e equívocos que tendem, na prática, a produzir desvirtuamentos e atrasos. Não atribuiu graus de prioridade às diferentes lutas por uma sociedade mais justa. Se por um lado a dominação do homem sobre a mulher não é uma criação do capitalismo, nem resulta da divisão da sociedade em classes, o ideal socialista só pode ser qualificado de genuíno e real na medida em que proponha a libertação do conjunto social.
A divisão igualitária das posições de poder e prestígio, da cultura e da produção, assim como a distribuição equitativa das tarefas, tanto na vida social como no âmbito doméstico, entre homens e mulheres, é um objetivo que requer tenacidade e desassombro, duas características que nunca faltaram a essa cearense, mãe de seis filhos, e cozinheira de mão cheia.
Helô, como gostava de ser chamada pelos amigos, sabia apreender dialeticamente a luta das mulheres nos países periféricos. Seria um equívoco completo afirmar que todas as militantes que, na América Latina e na África, lutam por seus direitos tenham como meta final a construção do socialismo. Mas é possível afirmar que a maioria delas se constitui como sujeitos históricos relevantes, a partir de movimentos sociais e políticos, que levantam plataformas de luta e programas de trabalho questionadores do status quo, postulando a criação de uma sociedade baseada na igualdade e na justiça social.
Embora Heloneida soubesse que a discriminação da mulher não termina num passe de mágica com a construção do socialismo, a superação da sociedade de classes é necessária para eliminar a exploração e discriminação próprias do capitalismo.
Foi nesse fio tênue que construiu sua trajetória. A partir daí se impõe que a luta pelos direitos específicos de gênero demandem ações políticas simultâneas e em todos os planos permitidos pela realidade concreta, para assegurar o respeito aos direitos. É longo, e penoso, o caminho para o cumprimento da promessa de Lênin, segundo a qual “é preciso fazer de cada cozinheira uma estadista". A revolução, sem dúvida, é feminina.
Com seu fino senso de humor, a militante incansável registrava, em ensaio publicado no "Livro da Cabeceira da Mulher” (Civilização Brasileira, 1975): ”não há movimento sério que não tenha suas alas radicais. São militantes que não só desconhecem a realidade, como encampam idéias que apenas servem para expressar as suas neuroses (...) o que elas querem é que as mulheres mudem seus hormônios, abram mão das suas leis biológicas ditadas por suas glândulas. Ou seja: que lancem fora a lei física que lhes deu útero, vagina, seios e a par disso o impulso profundo em direção ao macho. Querem não uma mudança política, mas uma mudança de metabolismo". Definitivamente, Heloneida nunca calou divergências para evitar confrontos.
Sua lucidez a levava a compreender o feminismo como parte de uma transformação geral no mundo inteiro, em que a libertação das mulheres diz respeito à libertação dos homens em geral. É um processo molecular, atravessado por avanços e recuos, mas que se configura com força cada vez maior.
A participação das mulheres no primeiro escalão do governo da presidente Dilma pode ser creditada à luta de ativistas como Heloneida. Ambas, embora com perspectivas distintas, partilham a mesma poética do espaço. Em algum ponto de equilíbrio, o vento leste do saguão sopra no Palácio do Planalto. Dilma e a doce cearense finalmente se encontraram.
*Gilson Caroni Filho é sociólogo e mestre em ciências políticas. Mora no Rio de Janeiro, onde é professor titular de sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha). É colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?".
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