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sábado, 19 de fevereiro de 2011

O discurso dos surdos

LIBRAS é a arte de falar com as mãos. Foto: Luciano Magalhães Dinis
O discurso dos surdos

Por José Ribamar Bessa Freire (*)


Ao Jau, que ficou de fora e à Teca, que me colocou por dentro

Eles não sabem o que é a música da chuva no telhado, nunca adormeceram embalados por ela.  Nunca ouviram, na hora da fome, o chiado do bife na frigideira. Desconhecem o latido do cachorro, o miado do gato, a buzina do carro, a voz das pessoas. É que eles não ouvem os sons cotidianos e triviais que os outros ouvem, nem mesmo aquilo que os outros falam. Por isso, muitas vezes, são discriminados e excluídos.
Na luta pela inclusão, eles conquistam, agora, o diploma de professor conferido pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em solenidade realizada nessa segunda-feira, 21 de fevereiro, em Manaus. É a primeira vez, na América Latina, que uma universidade oferece um curso prioritariamente a alunos surdos. A Licenciatura em Letras-Libras, organizada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é ministrada para 500 alunos em parceria com oito instituições públicas de ensino superior do Ceará, Bahia, Brasília, Santa Maria (RS), Goiás, São Paulo e Amazonas.  

Na UFAM, em Manaus, as aulas iniciaram no final de 2006, com 55 alunos aprovados no vestibular. Quatro anos depois, só a metade concluiu: são 27 formandos, dos quais 19 surdos e 8 ouvintes. A outra metade ficou no meio do caminho. Te convido, leitor (a) a assistir a formatura deles, imaginando o que vai acontecer nessa segunda-feira no auditório Joaquim Eulálio.
Na mesa, a reitora da UFAM, Márcia Perales, que preside a cerimônia, anuncia dentro de instantes o orador da turma, Sílvio Márcio Alencar. Ele esperou 41 anos por esse dia, por essa hora. Levanta-se e caminha ao microfone. Ao microfone? Não. Suas mãos não precisam disso. Ele vai romper o silêncio, fazendo um discurso em sua língua materna, a Libras – Língua Brasileira de Sinais – reconhecida oficialmente no Brasil desde 2005. Haverá tradução simultânea dessa língua visual-espacial para o português oral-auditivo.
Naquela fração de segundos entre o anúncio de seu nome e o início do discurso, um filme emflash back registrará, provavelmente, as histórias que Silvio e seus colegas viveram, ao longo da vida, condensadas ali, naquele instante em que derrotam a discriminação, o preconceito, a exclusão numa luta contra uma deficiência invisível com a qual a sociedade não está preparada para conviver.
A voz das mãos
Eles lembrarão situações em casa, no trabalho, na fila do banco, nas relações sociais, o calvário, algumas vezes, dos aniversários em família, onde nem sempre é possível rir das piadas contadas pelo tio bigodudo ou pela tia com dentadura, porque bigodes e próteses dentárias atrapalham a leitura labial. De repente, todo mundo ri. Eles, então, ou fingem que entenderam e forçam o riso, ou procuram se inteirar da piada, mas às vezes os familiares, sem paciência para explicar, demonstram irritação. É quando, quietos e silenciosos, ficam isolados num canto, mergulhados na solidão.
O orador, antes de começar seu discurso na solenidade de formatura, olha o auditório e se pergunta em quantas famílias ali presentes existem ouvintes que aprenderam a língua de sinais para se comunicar com eles. Ali, entre seus colegas, quase todos poderão registrar a dificuldade de amigos e parentes em lidar com a surdez, o que gera irritação e frustração dos dois lados pela dificuldade em manter um diálogo.
A comunicação entre ouvintes e surdos se faz, em geral, através de sinais caseiros improvisados e, sobretudo da língua falada, com os sons articulados pausadamente para facilitar a leitura labial. Mas tem sempre o namorado de uma prima, que nunca teve contato com um surdo, e que fala gritando, pensando que assim será ouvido. Diante do olhar de paisagem, acha que seu interlocutor é deficiente mental. Os surdos gostam de contar piadas gozando essas pessoas que não entendem o que é a cultura surda.
Mas as relações não são apenas de incompreensão e discriminação. O orador e seus colegas lembrarão, ainda, o outro lado da moeda: o amor e a solidariedade de mães, pais, irmãos que conseguem se colocar na pele deles, que nem a vovó na novena, às terças-feiras, indicando-lhe discretamente que o hino cantado nesse momento pelos fiéis é o “Virgem mãe Apareciiiii-ida” e não o “Viva Mãe de Deus e nó-ossa”, salvando-lhe de pagar um mico.  
Dos preconceitos, todo mundo ali, no auditório, aprendeu a se defender e a administrar situações embaraçosas, criando estratégias para sobreviver dentro de uma cultura sonora. Certa cadela de estimação chamada Daiana e certo gato de nome Leon aprenderam a Língua de Sinais. Daiana balança o rabo, feliz, diante da sinalização de ‘passeio’ ou “fazer xixi”. Leon ronrona com o sinal de “comer”. Quem ensina libras pra cachorros e gatos, certamente terá sucesso com seres humanos. É o que eles, professores diplomados de Libras, vão fazer.
Ensinando Libras
Vamos ouvir o discurso do orador. Ele está dizendo, agora, que o diploma que os 27 professores receberão foi conquistado com esforço e dedicação, num curso muito puxado, organizado com o objetivo de possibilitar o domínio em Libras e de privilegiar as formas de ensinar e aprender dos surdos. Esses professores licenciados vão se inserir no mercado de trabalho, ensinando o curso básico de Libras para alunos, tanto surdos como ouvintes, mas contribuirão também na formação de fonoaudiólogos e professores universitários.
A Licenciatura em Letras-Libras criou um ambiente virtual de aprendizagem, com as ferramentas necessárias para disponibilizar os conteúdos em Língua de Sinais, como o “hiperlivro”, que coloca textos em Libras nas mãos de alunos de todo o país, além de recursos de videoconferência, DVD-Vídeo, material impresso, usando a modalidade do ensino à distância.
O orador certamente agradecerá à coordenadora do curso na UFAM, Nídia Sá, e às professoras da UFSC Roseli Zen, Ronice Muller e Heloísa Barbosa, responsáveis pela elaboração do projeto pedagógico do curso e de seu currículo, que funciona integralmente na Língua Brasileira de Sinais. Essa é uma forma de garantir que o aluno surdo construa seu processo de aprendizagem, sem necessariamente depender do domínio da Língua Portuguesa, permitindo o acesso ao conhecimento em sua própria língua e, em consequência, o exercício à cidadania.
Não sei se o orador vai dizer, mas eu digo: nesses quatro anos de duração do curso surgiram muitos problemas. A troca de tutores cuja função é tirar as dúvidas dos alunos e corrigir provas, a falta de entrosamento com outros alunos de outros cursos da UFAM, uma vez que as aulas ocorreram sempre aos sábados. De qualquer forma, o orador e seus colegas reconhecem os momentos de aprendizagem, de descontração e de alegria e demonstram contentamento por concluir um curso superior em sua língua materna.
Depois do histórico do curso, o orador fará uma homenagem a Tatiana Monteiro, a primeira surda aprovada no concurso para professor da Ufam. Registrará, talvez, um dado triste: essa é a única turma formada no Amazonas, porque a UFAM se retira do projeto e não abrirá outras turmas para surdos, frustrando uma grande demanda no mundo dos surdos e dos ouvintes. (Ver também “Ninguém mais será Jaú” http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=16 ).
P.S. – Na quarta-feira, dia 23, às 19 horas, o professor da UFAM, Sérgio Freire de Souza vai lançar o seu livro Amazonês – Expressões e Termos Usados no Amazonas na Saraiva MegaStore. O livro, que registra nosso jeitão de falar, é uma contribuição sociolinguística para a compreensão da identidade amazônica.





*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blogTaqui Pra Ti e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.

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