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A Universidade de Coimbra justificou da seguinte maneira o título de Doutor Honoris Causa ao cidadão Lula da Silva: “a política transporta positividade e com positividade deve ser exercida. Da poesia para o filósofo, do filósofo para o povo. Do povo para o homem do povo: Lula da Silva”

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sábado, 21 de agosto de 2010

"Pô, Jabor, vamos ouvir uma musiquinha!"

Ilustração de Cavalcante

Pô, Jabor, vamos ouvir uma musiquinha!

Por Arnaldo Bloch*

Prezado xará Jabor, estava lendo dias
atrás sua coluna sobre os arrepios
que vem sentindo diante do cenário
eleitoral (com Serra ou com Dilma,
uma grande cilada nos aguardaria!), e dos pe-
rigos de nosso atual momento, no qual esta-
ríamos cercados por forças que, de um modo
ou de outro, nos levarão às trevas da mais
inexpugnável opressão. Jabor, eu aqui decla-
ro: ao contrário de você e de tanta gente à mi-
nha volta, ainda não escolhi meu candidato.
Que nem disse o Jards Macalé: “Meu voto é
tão secreto que eu mesmo desconheço.” Além
disso, Jabor, não sou analista situacional nem
tenho a sua bagagem em vivência de proces-
sos políticos traumáticos. Nasci em 1965,
meus pais não eram ativistas, minha família
não rezava por cartilhas muito libertárias.
Por motivos de superproteção materna
maior, não frequentei os movimentos da es-
querda sionista (pô, mamãe!). Fiquei mesmo
ali, na santa ignorância sobre o arbítrio e a
violência do regime, até a sua abertura.
Entre um Dostoievski, um Kafka, um Hess e
um Ionesco, abria os jornais locais e relaxava
com os quadrinhos e os esportes. Achava Mé-
dici um velhinho simpático (o único defeito
era ser Flamengo) e me emocionava com as
paradas militares. Até hoje, quando ouço ruí-
dos de helicóptero em domingo de sol, volta-
me aquela sensação de conforto alienado. E
fico com um baita sentimento de culpa.
Em compensação, minha primeira grande
emoção cívica esclarecida (até onde era pos-
sível ser esclarecido) foi de lavar a alma: a
corrente das Diretas Já, a vigília, o comício do
milhão na Candelária. O pano da censura bai-
xou e eu bebia, no teatro, no cinema, nas ar-
tes, nos jornais, essa água nova do saber. Na
faculdade, liberto do cerco familiar, integrei
uma turma que já via como anacrônicas as
“questões de ordem” dos veteranos engaja-
dos e, ao mesmo tempo, negava as ondas de
caretice da direita tecnocrática que se insi-
nuava na arena do movimento estudantil.
Sabe, Jabor, gosto muito da sua verve e
aprecio seu alarmismo quando ele traz junto
uma autoironia redentora, uma confissão da
própria paranoia, um reconhecimento do pa-
thos do seu discurso, aquela coisa do bode
preto, do seu bode preto, estar sempre à es-
preita. Mas ao tomar o trem de seus arrepios
recentes, confesso que senti também um ar-
repio, provocado pelo seu desencanto e pela
sua desesperança no povo brasileiro. Bati na
folha do jornal e disse: não, não e não! Não
vou crer que os tais 80% de Ibope a que você
se refere sejam compostos de uma substância
humana miseravelmente iludida, incapaz de
contemplar o andar da carruagem, desprovi-
da de qualquer juízo. O brasileiro tem lá suas
carências de educação e de proteína, mas não
consigo, não consigo mesmo, ver esse povo,
passadas duas décadas e meia do início da re-
democratização, caminhar no escuro, ou na
direção do abismo.
Vejo, sim, um país que, por obra do eleitor,
levou Collor, FH e depois Lula ao poder e que,
através de suas escolhas, certas ou erradas,
deu um belo passo no sentido da consolida-
ção do tal processo democrático. Olha Jabor,
não vejo encanto em nenhum dos candidatos.
Não é, aqui, uma questão de preferência, mas
de referência. Talvez por ser um filho da ig-
norância que de repente acordou na grande
virada; ou talvez por ser menos marcado por
convulsões radicais eu tenha esta percepção
positiva. Por outro lado, há fatos a apoiá-la:
independentemente dos desmandos desse ou
daquele, dos equívocos, das apropriações de
ideias, há uma verdade indiscutível: não veio
a ruptura institucional que tantos temeram.
O Brasil foi, e é, maior que Lula, maior que
FH, que Dilma, que Serra, que os Arnaldos, os
jabores e os blochs. O Brasil é esse bêbado
equilibrista que não caiu. Que estabilizou a
moeda e a manteve estável. Que não fechou o
Congresso. País onde as instituições e os
meios de difusão de informação têm lá suas
turras, mas a imprensa está aí, dialogando
com a sociedade e com as esferas políticas
em meio à transformação revolucionária, pa-
ra o bem e para os males, que ocorre na tec-
nologia. Sei lá, Jabor. Essa sua ideia do perigo
iminente — ou será imanente? — me lembrou
um pouco a Regina Duarte em 2002, dizendo
que íamos mergulhar na hiperinflação.
Não vamos mergulhar em nada, nem a cur-
to nem a médio prazo. Acho, sim, que o ho-
mem, num âmbito global, tem questões fun-
damentais a resolver sobre sua relação com o
meio ambiente, com os recursos, com sua dis-
tribuição. O Brasil, por outro lado, vejo mais
como uma nação que cresce do jeito que uma
sociedade democrática recente (onde vigora,
incontestável, e mais do que nunca, o capita-
lismo) consegue crescer. Um país com um
passado pleno de conflitos, estruturas ainda
muito viciadas, que evolui.
Os arrepios que venho sentindo, Jabor, são
de ordem sensorial, no sentido do belo. Arre-
pios ao tocar um pianinho. Ao sentir o vento
dourado de poente invernal varrer da cuca o
bode preto. Arrepio dessa aragem boa que
qualquer um, no carro, no asfalto, no morro,
pode sentir, irmanando-se. Arrepio com um
romance filosófico da lavra de “Paisagem com
dromedário”, de Carola Saavedra. Arrepios de
bicicleta. Da crença súbita no amor. E no amor
ao Brasil. Ao que somos. Ao que fizemos até
aqui. Na boa, Jabor. Pô. Vamos ouvir uma mu-
siquinha. Dar uma respirada.

*Saiu no jornal "O Globo" de hoje, 21 de Agosto de 2010. Sim, no jornal "O Globo". Há muito tempo que eu não fazia isso, mas este texto merece leitura.

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