Carlos Alberto Lungarzo é ativista dos Direitos Humanos, sendo membro, desde 1982, da Anistia Internacional – que ajudou a fundar na Argentina, onde nasceu – e voluntário do Alto Comissionado das Nações Unidas para os refugiados. A estes deu sua contribuição no Brasil, América Central e México. Escreveu o livro "Vendetta!" sobre o julgamento do escritor italiano Cesare Battisti e colabora com duas ONGs da esquerda americana: a “Anwer.org” e a “Move On!”. Para honra minha, é atualmente co-editor do "Quem tem medo do Lula?", onde publica seus artigos diretamente.
Nesta entrevista, concedida numa agradável noite, em uma das varandas do Campus da UFRJ na Praia Vermelha – onde esteve para participar de um seminário sobre jornalismo – ele fala sobre a necessidade de que se esclareçam os crimes da ditadura militar brasileira.
Para ele, ao querer acesso aos documentos referentes à atuação de Dilma na ditadura, a mídia quer “criar agitação e confusão”, na tentativa de “suprimir a realidade, através de informações forjadas, que não são corretas – ou que, mesmo sendo corretas, são agitadas e colocadas fora de contexto, produzindo um impacto maior do que teriam naturalmente.” Por outro lado, ele considera que “se for contado o que de fato aconteceu com ela, é grande a possibilidade de aumentar o grau de consciência da sociedade.”
Conclui lamentando que o nosso sistema judiciário seja “uma ditadura, que não presta contas a ninguém, que se impõe por pressão e que usa uma linguagem ininteligível para o povo.” Sem que isto seja mudado, “nada de democracia”.
Por Ana Helena Tavares*, entrevista realizada em 17 de Novembro de 2010
Você nasceu na Argentina e se exilou no Brasil, depois do golpe lá. Como foi isso?
Foi em 1976. E minha primeira experiência foi vir ao Brasil. O que ficou de lá foram hábitos culturais, mas tudo rapidamente superado, pois me adaptei muito bem ao Brasil. O mais grave que ficou foi a dor da perda dos amigos, saber que estavam sendo assassinados e torturados. Quanto ao Brasil, morar aqui era uma velha aspiração minha. Não necessariamente em Campinas, como morei, mas num local mais tropical, como Bahia ou Rio. De qualquer maneira, gostei muito. Pude apreciar um pouco a diferença das pessoas. A cultura argentina mudou bastante e eles não sabem que mudou. Só quem viveu lá antes, saiu e hoje volta lá, é que percebe. Mas eles são ainda muito arrogantes e o componente racista é muito forte na sociedade. Então, eu comecei a ver o papel dos populares no Brasil – existem muitos marginais e tal – mas há uma cordialidade que eu não encontrava lá. Quer dizer, esse exílio não foi pra mim uma experiência traumática, tanto que fiquei aqui (atualmente em São Paulo).
Você considera que os argentinos são mais racistas que os brasileiros?
Não sei se a intensidade é maior. O que acontece é que o racismo é mais generalizado. Não há lá a mistura de raças que há no Brasil e, não havendo essa miscigenação, a pessoa potencialmente pode ser racista: anti-negro, anti-índio ou coisas do gênero. No Brasil, eu acho que o racismo está restrito a grupos da classe média e da burguesia ou então a pequenos grupos ignorantes. Parece-me que aqui o racismo está menos estendido do que na Argentina. Com relação à atuação, creio que, dentro dos grupos racistas, a intensidade seja parecida.
Você é militante da Anistia Internacional já há 28 anos, como a organização tem visto a decisão do STF brasileiro de não punir os torturadores da ditadura militar?
Muito mal. Recentemente, na minha rede de contatos, na qual está seu blog, eu fiz circular alguns comunicados da Anistia. Oficialmente – o que também é uma posição minha – nós pensamos que isto é uma grande burla, uma grande pirraça contra as pessoas que realmente sofreram por causa disto. É uma consagração da impunidade que, por um lado, significa não fechar nunca mais as contas.
Quais seriam os caminhos para fecharmos estas contas?
Você tem várias formas de aplicar uma justiça restitutiva, restauradora. Há uma que deve ser rejeitada, que é a vingança, como, por exemplo, a que se aplicou em Nuremberg: como os nazistas, enforcando os criminosos de lesa humanidade. Isto seria uma mistura de justiça com vingança, o que eu pessoalmente repudio. Formas mais humanas se aplicaram na Argentina, na Grécia, no Chile, e eventualmente em Israel: julgar estas pessoas e dar-lhes uma pena que não pode ser proporcional aos crimes que foram muito grandes. Uma pena que, pelo menos, garanta à sociedade a sua segurança. Finalmente, numa forma mais conciliatória, haveria uma Comissão de História e Verdade, como foi na África do Sul. Onde as pessoas que participaram do Apartheid, estando de acordo, fizeram uma autocrítica. Isto, para mim, tenciona a entender qual foi a gravidade dos fatos. Mas aqui não se faz nada disso, este é o problema.
Quais outros países ainda devem este acerto à sociedade?
Na situação do Brasil há outros três ou dois países. Honduras e El Salvador também não fizeram, digamos, sua autocrítica. A maioria dos países da América Latina tem feito algo, por pouco que seja. Inclusive, o Peru. País historicamente dominado pela direita e onde é muito difícil passar qualquer motivação democrática. Mas lá eles fecharam as contas. Lá e na Argentina, no Uruguai e até no Paraguai. Então, você tem aqui uma concessão, uma atitude claudicante que pode ter conseqüências negativas no futuro. Pode alentar um novo massacre.
Você acha que a OEA pode vir a pressionar o STF a reverter sua decisão?
Sem dúvida, pode pressionar, não quer dizer que o Brasil vá obedecer. O problema é o seguinte... Há duas coisas diferentes: a ação punitiva e a executória. Para você executar uma decisão teria que haver um poder central. Qual seria a polícia internacional que entraria no Brasil, colocaria esses caras no tribunal e faria um julgamento? Isto não se pode. Mas é verdade que existe uma tendência cada vez maior de se pensar que há uma jurisdição internacional para os crimes de Direitos Humanos. Não para delitos políticos, que não tenham um impacto radical.
Há casos para serem citados sobre a atuação de uma jurisdição internacional?
Há dois casos importantes. Um foi contra o ditador Pinochet do Chile, que fez uma visita à Inglaterra. Neste momento, o juiz Garzón, da Espanha, considerou que os crimes cometidos pela ditadura chilena eram de jurisdição internacional e pediu a extradição de Pinochet para a Espanha. Esteve quase próxima a ser concedida. Houve muitas opiniões favoráveis na própria Inglaterra. Fracassou por causa da ex-ministra, Margareth Thatcher, que se opôs, e uma série de outras coisas. O outro caso foi de um torturador argentino, o capitão Scilingo, um sujeito que tem uma folha corrida impressionante: 150 desaparecidos, 153 aplicações de tortura, e muitos outros crimes. Ele foi detido na Espanha, onde está cumprindo prisão de 30 anos, apesar de não ter cometido nenhum crime lá. Ou seja, é um caso típico de jurisdição internacional, o que é uma tendência do direito humanitário internacional, que vai ganhando força muito devagar. Neste sentido, creio que – e eu falei isso na última reunião de Direitos Humanos lá em Brasília – é necessário que se apresente uma queixa à Comissão de Direitos Humanos da OEA. E, depois disso, é esperar para ver o que acontece. Será um processo lento.
Em que medida a não-punição dos torturadores da ditadura pode estimular a continuação da prática de tortura?
Esta pergunta é excelente, inclusive eu ia dizer algo sobre isso. Eu acho que essa impunidade incentiva. Porque, digamos, o sargento, o cabo ou o tenente que tortura numa delegacia tende a achar que não será atingido. São menos importantes que um general, mas ninguém até agora foi atingido aqui. Apesar de que tortura é crime pela lei brasileira. Mas, se você fizer uma pesquisa, até onde eu sei, punições graves, de mais de 20 anos de prisão, por tortura somente se aplicaram em 3 ou 4 casos em Porto Alegre. De resto, são punição curtas, nas quais a pessoa acaba tendo liberdade condicional, redução da pena, etc... Então, sem dúvida isso vai incentivar e acho que já tá incentivando a prática corriqueira de tortura no Brasil.
Na época eleitoral e também agora, a Folha de S. Paulo andou tentando de todas as maneiras conseguir os documentos referentes à atuação da Dilma na ditadura. Recentemente, o STM (Superior Tribunal Militar) concedeu esse acesso não só à Folha, mas a todos os veículos de comunicação. Qual a importância de essa documentação vir à tona e como você vê o papel da mídia nessa questão?
A importância creio que é praticamente nula, porque todo mundo sabe, a própria Dilma tem falado, que pertenceu à VAR-Palmares, que foi guerrilheira, etc... Provavelmente, a mídia suspeitasse que alguma coisa interpolada – inventada – pelos militares pudesse acrescentar algo. Esperavam que aparecesse algum assassinato, algo assim, que de alguma forma degradasse a imagem da Dilma. Mas não há nada. E eu penso também que o objetivo principal da mídia, em particular da Folha, notadamente durante as eleições, era criar um clima de agitação, de confusão que se juntasse às denúncias de quebra de sigilo bancário e a tudo aquilo. Porque o que há nessa documentação é o que todo mundo sabe. Ainda que ela tenha pegado em armas, não cometeu, ela própria, nenhum ato de violência.
Você chamaria isso de tentativa de golpe?
É um golpe sim. Não um golpe militar, mas é o que chamamos de golpe branco. É querer suprimir a realidade, através de informações forjadas, que não são corretas – ou que, mesmo sendo corretas, são agitadas e colocadas fora de contexto, produzindo um impacto maior do que teriam naturalmente.
Você acha que o fato de que teremos na presidência uma pessoa que foi torturada pode contribuir de alguma forma para a elucidação dos crimes da ditadura e você acha que ela própria poderá ter papel importante nisso?
Bom, quanto a ela própria, eu particularmente duvido um pouco. Acho que a tendência dela, como foi no governo Lula, é de acalmar as coisas. Agora, pode ter um efeito espontâneo na população, no sentido de que as pessoas comecem a refletir sobre o que significou a ditadura. Acho que isso dependerá de como será contada a história da Dilma, de que publicidade será feita dela. Se for contado o que de fato aconteceu com ela, acho que é grande a possibilidade de aumentar o grau de consciência da sociedade.
A nossa sociedade já é totalmente democrática?
Vivemos numa democracia que pode ser que esteja parcialmente consolidada. É difícil de ser derrubada. Acontece que ainda é uma democracia insuficiente. Por exemplo, você conhece e eu também, uma série de pessoas com certa formação intelectual que não lembra em quem votou nas últimas eleições. Para cargos legislativos. Deputados, vereadores. E algumas não lembram nem dos governadores. Então, há uma idéia de que os assuntos políticos estão totalmente fora dos interesses do cidadão. Isso é muito mais graves nas classes populares, onde as pessoas geralmente votam levadas pela propaganda. Ou seja, tá muito confusa ainda a nossa democracia. É verdade que isso acontece também em outros países, como os Estados Unidos, onde também as pessoas não têm muito idéia de porque estão votando.
O que falta para mudarmos esse quadro?
Um primeiro problema seria dar às pessoas educação política para que tenham um voto consciente, o que eliminaria certos nomes que temos no parlamento e que formam um verdadeiro bando de criminosos. Você tem, por exemplo, aquele deputado que propunha fuzilar o FHC – um psicopata extremo, que é militar e defende a ditadura – e tantos outros exemplos, como os responsáveis por massacres no campo e em presídios, chefes de órgãos de tortura, etc. Reconheço, porém, que eles não são maioria. Uma segunda coisa fundamental é modificar o sistema judiciário, que – como disse nada menos que o ministro Marco Aurélio de Mello, a figura mais brilhante do Supremo Tribunal – é uma ditadura, que não presta contas a ninguém, que se impõe por pressão e que usa uma linguagem ininteligível para o povo. Embora até haja bons juízes, inclusive na Suprema Corte, precisamos com urgência de uma justiça formada por gente realmente honesta e séria. Sem isso, nada de democracia. Aliás, deve levar-se a sério a experiência da Suíça, Japão, e alguns países da União Européia, em que o juiz é eleito pela população. Isto tem algumas dificuldades, mas é claro que o sistema atual é totalmente antidemocrático, draconiano e inimigo dos Direitos Humanos.
Clique aqui para ouvir a gravação desta entrevista. Com direito ao forte sotaque argentino do entrevistado.
Clique aqui para ouvir a gravação desta entrevista. Com direito ao forte sotaque argentino do entrevistado.
*Ana Helena Tavares é jornalista, editora-chefe do blog "Quem tem medo do Lula?".
Reprodução permitida desde que citada a fonte. Este conteúdo está sob a Licença Creative Commons.
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