Na universidade em que leciono há pichações em vários locais com os seguintes dizeres: "nossos sonhos não cabem na urna: vote nulo!". A frase tem efeito e, por isso, pode ser convincente. Principalmente porque todos nós, da esquerda, concordamos com a premissa de que nossa utopia e nossos sonhos jamais se realizarão apenas através de eleições. Eu, de minha parte, nunca depositei minhas esperanças no processo eleitoral e acredito que a priorização excessiva que os movimentos sociais e partidos de esquerda lhe deram foi a principal responsável pela desarticulação da luta popular.
A frase da pichação tem tido atualmente uma variação: nossos sonhos não cabem em Serra ou em Dilma: vote nulo! O sentido da frase é o mesmo. Mas contém a mesma falácia, ou seja, é um argumento que parece verdadeiro, mas não é. Se tenho que rejeitar tudo aquilo no qual meus sonhos não cabem, tornar-se-iam verdadeiras todas as variações do argumento. Vejam bem: nossos sonhos não cabem em um prato de comida: não comam! Nossos sonhos não cabem em um curso superior: não freqüentem a universidade! Nossos sonhos não cabem em um ônibus: andemos a pé! Etc.
Não é verdade que nossas utopias não cabem em tantos lugares, mas nem por isso abrimos mão da necessidade de se usá-los?
É evidente que, dependendo das forças que ocupam o poder, o processo de transformação social pode avançar ou retroceder. A vida das pessoas pode melhorar ou piorar. A relação com outros países pode ser de subserviência ou de autodeterminação. E é aí que a nossa decisão deve se pautar.
Parafraseando a frase da pichação, "nossos sonhos não cabem em discursos de esquerda"; eles também têm uma dimensão prático-operacional.
Quem é de esquerda deve ter críticas profundas ao Governo Lula. Sabemos quais são, não precisamos insistir nelas. Mas sabemos também que nenhuma de nossas críticas se assemelha às da extrema-direita. Ou seja, não somos aliados do PSDB e do DEM na oposição ao Governo Lula.
Mas, ser crítico não é ser míope. Somos obrigados a reconhecer que a relação do Governo Lula com os movimentos sociais, se não foi a que desejamos, tampouco se pode comparar com a de FHC. Embora a reforma agrária não tenha sido realizada, o MST não foi combatido ou criminalizado em suas reivindicações. Ao contrário, pôde beneficiar-se de diversos programas para os assentamentos e a agricultura familiar. Os resultados fortalecem a luta social.
Programas que investiram no combate à pobreza extrema são polêmicos, pois podem ser chamados de assistencialistas ou até, para os mais exaltados, como uma espécie de “anestesia que impede o desabrochar do espírito de revolta que favorece a atitude revolucionária”. Caros companheiros, a fome (cuja experiência desconhecemos) não causa revolução. Causa dor, desespero, submissão e a fuga para atividades fora da legalidade. Caso contrário, os grupos de esquerda seriam mais fortes que o narcotráfico, que a economia informal e que a criminalidade.
Além disso, eu que me alimento todos os dias, não quero fazer discurso para os que não comem, não quero dialogar com estômagos em desespero, mas sim com a consciência de cidadãos que, uma vez alimentados, podem sonhar com uma sociedade sem exploradores e explorados. E se o capital não os alimenta, o Estado deve fazê-lo.
E sabemos que não se pode fazer nenhuma transformação profunda em um país sem modificar a correlação de forças no cenário geopolítico. Para tanto, é preciso de um bloco crítico que se interponha aos interesses das grandes potências, principalmente aos EUA, e defenda os interesses dos países periféricos em conjunto com os presidentes populares, como os da Venezuela, Cuba, El Salvador, Bolívia, Equador, Uruguai e outros.
Não podemos negar que Lula teve um grande papel na consolidação deste bloco crítico, por mais que rejeitemos o seu excessivo “jogo de cintura”. Podemos dizer que a coligação PSDB/DEM teria a mesma postura com os países periféricos?
Por esses motivos e por muitos outros, não podemos dizer que o país ficará igual com Dilma ou com Serra. Nem que os movimentos sociais serão indiferentes a um governo ou ao outro.
Portanto, uma coisa é demarcar posicionamentos ideológicos, reafirmar nossas mais profundas convicções revolucionárias, combater o capitalismo com todas as forças e sem capitulação, trabalhar a mobilização popular e lutar pelo socialismo. Outra coisa é apertar dois dígitos em uma urna para escolher o presidente quando só se tem duas opções. São tipos de ações diferentes, não excludentes, mas, de certa forma, relacionadas.
Eu, de minha parte, não quero ter sob minhas costas o peso da omissão, caso Serra e as elites mais atrasadas venham a ocupar o Palácio do Planalto, perseguindo os movimentos sociais, virando as costas para os países periféricos, jogando o peso das crises financeiras nas costas do mais pobres e abandonando os miseráveis a seu próprio destino.
Por isso, voto em Dilma, sem alterar em nada minhas utopias e sem comprometer o meu espírito crítico e meu sonho de um futuro socialista.
*Maurício Abdalla é professor de filosofia da UFES e educador popular.
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