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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

LEMBRANDO UM GRANDE REVOLUCIONÁRIO: JOAQUIM CÂMARA FERREIRA

Celso Lungaretti (*)

Começam nesta 5ª feira (14) os eventos que marcarão o transcurso do 40º aniversário da morte, aos 57 anos de idade, do jornalista e revolucionário Joaquim Câmara Ferreira, que militou no Partido Comunista Brasileiro entre 1933 e 1967 (tendo sido barbaramente torturado durante o Estado Novo), para terminar seus dias como dirigente máximo da ALN, no ano seguinte ao assassinato de Carlos Marighella, de quem foi o braço direito.

Toledo  receberá,  in memorian,  a Medalha Anchieta e o Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, às 19h, na Câmara Municipal.

Para quem quiser conhecer melhor a trajetória desse companheiro exemplar, recomendo a obra "O revolucionário da Convicção: Joaquim Câmara Ferreira, o Velho Zinho", de Luiz Henrique de Castro Silva (2008), cuja íntegra pode ser baixada gratuitamente neste site 

Eis o trecho referente à prisão e morte de Toledo:

Joaquim Câmara Ferreira permaneceu com o grupo até quarta-feira, dia 21 de outubro de 1970. (...) Carlos Eugênio [da Paz] retirou Joaquim Câmara Ferreira de seu aparelho e ouviu deste que seu encontro com Severino [militante que tinha sido preso e reaparecera dizendo haver escapado] seria sexta-feira ao cair da noite. Então Carlos Eugênio disse: “peço oficialmente permissão para montar um esquema de segurança”.

Entretanto ouviu o seguinte de Câmara Ferreira: “sua insistência me desgosta, confio no companheiro e considero esse assunto encerrado.”

Um dos pontos que Joaquim Câmara Ferreira foi cobrir era com Renato Martinelli. Dias antes, Martinelli havia se encontrado com Câmara Ferreira, que lhe falou de uma operação na qual “nós vamos pôr fogo em São Paulo, operação Marighella não sei o quê.” Mas, como Martinelli exercia a função, naquele momento, de quadro político, Joaquim Câmara Ferreira propôs: “eu vou te dar um dinheiro e você vai pra uma missão como que me retirando de São Paulo, pra eu ir pra numa missão fora de São Paulo”.

Martinelli foi então àquele que seria seu último ponto com Joaquim Câmara Ferreira, para receber a missão e o dinheiro que lhe seria dado. Os contatos com Câmara Ferreira eram sempre diretos.
"[De acordo com Martinelli] “em 22 de outubro, já de volta a São Paulo, após ter regressado de uma viagem a Santa Catarina a mando de Câmara Ferreira, vou ao seu encontro, já pela segunda vez naquela semana. Para minha primeira surpresa, sou recebido por dois outros companheiros que haviam treinado comigo em Cuba.
"No carro que estacionou ao meu lado estavam o  Cesar  e o  Garcia. Era essa a primeira vez que me encontrava com eles no Brasil. Após os rápidos cumprimentos, me passam as instruções: 'você deve seguir em frente e entrar na primeira rua à esquerda. No percurso você encontrará o  Severino. Com ele você deve ir em frente e entrar na primeira à esquerda e continuar caminhando. Não se preocupe, companheiro, que no trajeto o Velho os encontrará. Minha resposta a essa segunda surpresa é imediata: 'Mas como, companheiros, o  Severino  não está preso no Pará?'

"Não, está aqui. Fugiu da prisão e veio para São Paulo.”
Os planos do inimigo já estavam em pleno andamento. Martinelli afirmou que, naquele momento, já havia uma quebra total no esquema de segurança da Organização. Não eram observadas as mínimas regras de segurança, e, para ele, somente a subestimação do inimigo, um pecado mortal na guerra revolucionária, pode explicar como os repressores haviam conseguido, em um período tão curto de tempo, mais uma vez chegar a um dos máximos dirigentes da ALN.
"[Conforme Martinelli] a situação era insólita, a última vez que eu havia visto o  Severino  fora ainda em Belém do Pará, no dia 7 de setembro, véspera do seu embarque para Imperatriz. Eu me lembro que caminhamos pela cidade e depois fomos comer um pato no tucupi, uma comida típica da região, em um restaurante perto do centro. Agora em São Paulo, seguindo todas as instruções dos companheiros, vou ao encontro do transfigurado 'companheiro': 'Você está bem magro  Severino, nem imagino pelo que passou'.

"'Nem fale nisso. Na rodoviária, quando fui preso, me confundiram com você. Quando percebi, sai correndo, briguei muito, mas me pegaram. Na prisão simulei o suicídio. Levaram-me para um hospital, de lá fugi... Cheguei a São Paulo de carona, de caminhão...'

"Caminhávamos, conversando sobre a   fuga, pela rua indicada, quando nos encontramos com o comandante Câmara Ferreira: 'Então companheiro, está contente com a surpresa?'

'Muito contente, uma surpresa e tanto' – respondi.
Para Martinelli, Joaquim Câmara Ferreira comete muitos erros em termos de se resguardar de uma possível prisão, tortura e assassinato. “Parece que ele tá meio desesperado, meio.. a segurança cai completamente. A coisa tá mais ou menos, os cuidados mínimos já não se toma, porque não existe um contato eu, ele e uma pessoa que fugiu da prisão. Não é assim que se trata.”

Martinelli afirma que havia uma lei na Organização chamada  Lei da Compartimentação, que tinha que ser respeitada por todos, ou seja, se fosse feita uma pergunta a um militante que fosse indevida, a resposta poderia ser diversionista. Se alguma pergunta ferisse a segurança de um militante, ele poderia dar respostas evasivas. E foi exatamente esta a tática utilizada por Martinelli neste último encontro com Joaquim Câmara Ferreira e o traidor  Severino.
"[Conforme suas palavras] entramos no carro, o Câmara Ferreira, o traidor Severino, e eu, dentro de um Fusca verde escuro parado na rua.  Severino continua falando sobre como chegou a São Paulo depois da 'fuga'”.

"Câmara Ferreira me pergunta se tenho mais informações sobre os acontecimentos e pede um relatório mais detalhado, por escrito, para aquele mesmo dia. Respondo que não é possível.

"Câmara Ferreira pergunta por quê. 'Não dá tempo para eu ir ao meu apartamento, escrever o relatório e voltar ainda hoje para São Paulo. Uma viagem de ida e volta até o litoral, e não é só isso, tenho outros compromissos e o tempo é curto. Essas praias, assim não há dinheiro que agüente'.

"'Lobato', você está exagerando, devia morar aqui em São Paulo. Vá lá, ao menos hoje, para poder escrever, se hospede em um hotel aqui em São Paulo, não tem problema, o  Severino  está hospedado em um...

"'Tá bem, Toledo, mas escrever um relatório para hoje é impossível, não dá. Mais alguma coisa?'

"A falta de preocupação e a confiabilidade excessiva dos companheiros e do próprio Câmara Ferreira com questões elementares de segurança sempre me incomodaram. Em primeiro lugar, em nenhuma hipótese o  Severino  poderia ter acesso direto ao Câmara Ferreira antes que todos os detalhes da sua  fuga  tivessem sido exaustivamente investigados, e muito bem comprovados por companheiros preparados para esse trabalho. 

"Depois, jamais ele poderia ter sido levado à minha presença, sem meu prévio conhecimento, ainda mais a um ponto a que compareceria o Câmara Ferreira. Finalmente, a minha resposta na presença do  Severino, praticamente me obrigava a falar do meu cotidiano, da região onde morava, e das dificuldades de escrever um relatório e apresentá-lo naquele mesmo dia. 

"A conversa continuou cada vez mais absurda para mim, algo nela me incomodava, não sabia o quê, talvez a bronca do  Toledo  pelo excesso de segurança pessoal. O fato é que, intuitivamente, no decorrer do encontro, havia sentido que devia me proteger... e sutilmente o fizera. 

"Não sei explicar por quê, talvez a surpressiva presença do   Severino  que causou uma situação de quebra total nas regras de segurança que eu havia incorporado ao meu cotidiano, e, quem sabe, ao estranho clima que permeou a insólita reunião. Por mais que eu havia notado a presença de um esquema de segurança no local, aquilo definitivamente não estava certo, estavam todos e tudo muito estranho.

"Finalmente, um novo encontro é marcado para o dia seguinte, 23 de outubro de 1970, creio que para as 19 horas, na rua Lavandisca, em Moema, quando eu entregaria o relatório para o Câmara Ferreira. Diferente do que dissera no interior do carro naquela manhã, extremando as medidas de segurança, não me hospedei em um hotel na capital e muito menos fui para um apartamento localizado no litoral. Posteriormente, soube que naquela noite a repressão havia realizado uma grande batida nos hotéis da cidade".
No dia 23 de outubro, com hora e pontos marcados, Joaquim Câmara Ferreira caminhou, ignorando todas as regras de segurança, para a armadilha que lhe havia sido preparada. Quando Joaquim Câmara Ferreira se encaminhava para o ponto com Tavares, as equipes do Dops circulavam em todas as áreas circunvizinhas, e a avenida já estava cercada pelo aparato policial formado pelo chefe dos investigadores do Serviço Secreto Osvaldo Machado de Oliveira (Osvaldão), o delegado Fleury, o delegado Jocecyr Cuoco e os investigadores Tralli, Campão e Donato.

No depoimento que deu a Percival de Souza, o delegado Jocecyr disse que era preciso que  Toledo  fizesse “avistamento”, isto é, Joaquim Câmara Ferreira deveria ver Tavares e, sentindo-se seguro, aproximar-se para fazer o contato. Jocecyr disse ainda que havia policiais disfarçados, e que “todos conheciam bem o lugar, porque, antes da operação um policial, Alemão, que gostava de tocar viola, havia feito fotografias da avenida e das imediações do ponto”. Foram dadas várias recomendações por Fleury de que se queria evitar o desastre da "Operação Marighella". Entre elas: “o homem é muito valioso e possui segurança reforçada”.

Conforme o mesmo delegado Jocecyr, quando Joaquim Câmara Ferreira apareceu, Campão atracou-se no pescoço dele com a força descomunal de um peso-pesado, perto de Tavares. Tralli foi ajudá-lo. Osvaldão gritando: “grampo no homem”. Neste momento, Renato Martinelli entrava pela avenida para o ponto com Joaquim Câmara Ferreira. Conforme seu relato:
“no dia seguinte, na hora combinada entro na rua, vestia um terno escuro, usava gravata e carregava uma pasta de executivo na mão, dentro dela levava o relatório contando detalhadamente os fatos que conhecia sobre as prisões de Belém do Pará. Minha aparência era a de mais um executivo que voltava para casa no fim da tarde, depois do trabalho. 

"Caminho uns trinta metros pela calçada do lado direito da rua. Como sempre nessas ocasiões, estou bem alerta, reparo num carro preto estacionado à minha esquerda, tem um casal no banco da frente e estão olhando fixamente para a frente, mais precisamente estão olhando para o horizonte. Definitivamente não estavam namorando, nem ao menos conversando estavam. Estranho e desconfio da atitude do casal, fico mais alerta ainda, diminuo os passos e continuo caminhando por mais uns vinte metros.

"De repente ouço uma puta gritaria. A confusão está acontecendo a uns 100 metros lá na frente, do mesmo lado da calçada que eu caminhava, a do lado direito. O carro com o 'casal de namorados' sai cantando os pneus em direção à confusão. A gritaria continua, não lembro de ter escutado tiros. Como precaução atravesso a rua e continuo andando, não sou o único a fazer isso. 

"Já no outro lado da rua, alcanço e passo pela operação policial sem ser notado. Eram muitos policiais, pelo menos uns oito, estavam todos de costas para mim, portavam armas de vários tipos, incluindo metralhadoras. Todos estavam no meio da rua, voltados para uma casa localizada na outra calçada da rua. Deitado na calçada, encostado e com o rosto virado para o muro da casa, vislumbro um vulto. A casa estava com as luzes acesas. Caminho mais um pouco, entro na primeira rua à esquerda, depois na próxima também à esquerda, voltando, dessa forma, por uma rua paralela à Lavandisca.

"Finalmente consigo um táxi e saio definitivamente do local: 'o senhor viu o monte de policiais na rua Lavandisca?' - perguntou o motorista. Na rua Lavandisca'. "...policiais,...não, o que houve?' - respondo. 'Parece que prenderam uns terroristas,... senhor, para onde vamos?'

"'Prenderam terroristas na Lavandisca!? Para a rua da Consolação, por favor, perto da...' Sem que eu soubesse, do outro lado da rua, a repressão assassina, contando com a nefanda ajuda do traidor José da Silva Tavares, havia logrado penetrar na organização e alcançar o nosso comandante, o companheiro Joaquim Câmara Ferreira”.
Nesse momento, segundo o delegado Jocecyr Cuoco, Tavares estava próximo e cobrou de Fleury o cumprimento do acordo firmado entre ambos: 
"Tavares estava encostado a uma parede. Toledo já estava na nossa mão. Ele disse para o Fleury, e eu ouvi muito bem: 'doutor, o nosso combinado está de pé a partir de agora'. Fleury olhou bem nos olhos dele e não disse uma palavra. Tavares falou mais o seguinte: 'cumpri minha obrigação. Não quero te ver na minha frente nunca mais'. Ele disse isso e foi saindo do local, caminhando normalmente pela calçada e desaparecendo entre as pessoas que se aglomeravam. Eu vi e ouvi isso, rigorosamente assim, como estou contando”.
(...) Após isso, Joaquim Câmara Ferreira foi conduzido para o sítio particular que Fleury mantinha arredores de São Paulo como centro particular de tortura. Joaquim Câmara Ferreira sofreu o infarto dentro da viatura policial e chegou ao sítio em condições precárias. Esse fato foi confirmado por Maurício Segall, que, juntamente com Maria de Lourdes (Maria Baixinha) haviam sido presos horas antes, e estavam no mesmo sítio sendo torturados. O motivo das torturas era exatamente saber do paradeiro de Joaquim Câmara Ferreira.
"[Conforme ele] “e aí foram para o ponto e pegaram o Toledo. Ele chegou, e aí eu estava, quando eles voltaram, eles puseram rápido na sala, porque a cama, eles levaram o  Toledo  pra cama porque o Toledo entrou ofegante, já com sinais de ataque do coração. E ele, aí foi um reboliço danado porque (...) eles precisavam entregar ele vivo pro exército, tá certo? Pra tirar dele o que pudesse e dar pro exército.
"Ele morreu. Nesse interregno, foram buscar médico. Levou tempo, eu vi, porque eu estava vendado, mas via por baixo eu vi um cara de calça branca passar e os ruídos de uma pessoa que teve ataque do coração porque eu sabia quais são os ruídos porque meu pai tinha morrido disso, eu tinha visto, eu ouvido. Ele morreu. 

"Aí, deu aquele reboliço todo e nós saímos vivos de lá. Aí eles levantaram acampamento, deixaram eu ir embora. E aí, depois, foram as coisas normais da parada Oban. Passei um tempo lá, a  Maria Baixinha  foi muito torturada, muito mais do que eu, nem tem comparação, porque ela era muito chegada ao  Toledo. Mas sobreviveu. Aí, eu fui parar na solitária do Dops, depois eu fiquei um ano preso em penitenciária e tal, nem foi tanto assim”.
Maurício Segall estava preso na solitária, e, num determinado dia, um agente de segurança o conduziu para o banho. Segundo Segall, ele lhe disse as circunstâncias da morte de Joaquim Câmara Ferreira: 
“Ele disse: 'olha o  Toledo  cumpriu o que disse. O  Toledo  dizia que ele nunca mais seria preso. Ele nunca mais seria torturado porque ele foi muito torturado no Estado Novo, né? E aí ele disse: nunca mais. E cumpriu, porque o cara disse: ele lutou tanto, quando caíram em cima dele no ponto, arrancou naco de carne da perna de tira, na base do dente, que ele teve um ataque cardíaco'".
* Jornalista, escritor e ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com

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