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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Um João chamado Barbosa

Um João chamado Barbosa

Por José Ribamar Bessa Freire (*)


Era um gozador, embora não tivesse motivos para achar a vida engraçada. Nascera no lugar errado: a Colônia Oliveira Machado, um viveiro de arigós pobres na periferia de Manaus. E no ano errado - 1914 - justamente quando o preço da borracha começou a despencar, aumentando a miséria nos seringais e cidades da Amazônia. A Primeira Guerra Mundial, prejudicando o seu abastecimento, trouxe mais fome para a região.



No final da guerra, a desnutrição e a gripe espanhola de 1919 mataram muitas pessoas em Manaus, entre as quais o agricultor Raimundo Barbosa. A viúva, dona Filomena, uma cearense de Quixeramobim, ficou na maior pindaíba. Comeu a mandioca que o diabo ralou. Alimentava os seus quatro filhos - João era o caçula - com chibé de farinha, molhada com xarope de Bromil, distribuido gratuitamente. "Nunca uma propaganda foi tão verdadeira: Da horrivel tosse que me pôs febril, me salvei com um milagroso frasco de Bromil", filosofava ele, anos depois.



Dois irmãos não aguentaram. Morreram. - "Onde pobre arma a rede, tem sempre uma goteira", ele dizia, sem nenhuma amargura. Não era sequer uma queixa, apenas uma constatação. Logo depois, Dona Filó deixaria a Colônia para armar a sua rede e as dos órfãos, num casebre, localizado no terreno atrás do Colégio D. Bosco, propriedade do bispo de Manaus, que o cedeu em troca de serviços domésticos.



Neste período, João Barbosa, um dos sobreviventes, foi uma espécie de auxiliar de sacristão da igreja de São Sebastião, se é que sacristão tem auxiliar. O certo é que, com os padres capuchinhos, ele aprendeu o catecismo, o gosto pela literatura, um pouco de latim-de-missa e de italiano e a comer macarrão. Comida, para ele, era talharim. O resto era conversa fiada.



Filho de viúva ficou, por isso, dispensado de servir o Exército. No início da década de 30, arranjou trabalho como balconista na Loja Leão, que ficava ali em frente ao Mercado Adolpho Lisboa. Como vendedor de tecidos, aprendeu a reconhecer um corte de casemira inglêsa, o linho HJ, o SS 120 irlandês e toda espécie de pano ou fazenda usada na confecção de roupa. Daí, foi ser vendedor na "Casa 22 Paulista", na rua da Instalação, onde continuou a desenvolver a arte da sedução.



Durante a Segunda Guerra Mundial, com a formação do "exército da borracha", gringos voltaram a passar por Manaus, reaquecendo o comércio local. O "turco" Jezzini - uma figuraça - tinha uma loja de fazendas na rua Sete de Setembro, detrás da Matriz. Precisava de um vendedor experiente, bom de papo, que conhecesse tecidos e que dominasse línguas estrangeiras. João Barbosa apresentou-se como se fosse a personificação da própria ONU:



- "Conheço o latim, falo o italiano, o espanhol e o francês e me viro em inglês".



Poliglota, foi contratado na hora. Dias depois, entra na loja o primeiro gringo. Era um francês. Chegara o momento do teste da verdade. O velho Jezzini, esbaforido, chama:



- "Minha bai do Céu! Babósa, Babósa, um cliente".



João Barbosa era capaz de ficar emitindo, durante dez minutos sem parar, um conjunto de sons parecidos com a língua francesa, com um impressionante sotaque de Jean Gabin. Não pensou duas vezes:



- "Cachorrí, tré-jolí, gê né sé pá, antandê-vu parlê françé, merci bô cu, né pá dequá ..." e continuou derramando um dicionário de palavras oxítonas, pronunciadas com tanta segurança, que impressionou os que ouviram.



O francês, embasbacado, é claro, retrucou qualquer coisa que Barbosa, é claro, decodificou a seu modo, respondendo no mesmo tom. Foi um tal de diga-lá, digo-eu, diga-você. O diálogo fantástico e surrealista prosseguiu por algum tempo, até que, visivelmente irritado, o francês vai embora, mas antes diz qualquer coisa do tipo:



- "Merde, alors! Vous êtes complètement dingue!"



O velho Jezzini, que a tudo assistira, pergunta:



- "O que é que êle queria, Babósa!"



- "Penico! Ele queria penico, seu Jezzini! Eu expliquei que isso aqui era uma loja de tecidos. Que ele procurasse lá na Central de Ferragens".



Durante mais de dez anos, vendeu, em várias línguas, muito tecido para gringos na loja do Jezzini, ninguém sabe como. Casou, teve filhos em série, anualmente, e no início da década de 1950 mudou de emprego, foi gastar o seu latim como cobrador do IAPC - o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários. Numa das tantas greves, houve demissão em massa. Seu nome estava na lista. Desespero em casa. Ele, tranquilo:


- "Isso não vai ficar assim não. O titio vai ficar furioso quando souber".



Ninguém sabia se falava sério, de gozação ou se estava delirando. De qualquer forma, escreveu mesmo uma carta a quem ele chamava de "titio": o senador Vitorino Freire, cacique político do Maranhão, com peso no cenário nacional. Queixou-se que havia sido demitido por perseguição política, pelo fato de ser sobrinho do senador. Assinou o nome completo: João Barbosa Freire. Recebeu resposta em papel timbrado do Senado, onde Vitorino informava que providências haviam sido tomadas, podia reassumir suas funções. Dito e feito. O alegado, porém controvertido parentesco, acabou funcionando. Ele foi reintegrado.



Morria de rir com essas coincidências. Quando a realidade era muito séria, ele a transformava, como durante os longos períodos de carestia. Manaus dependia dos navios que atracavam no Rodo. A cidade ficava, frequentemente, vários meses sem carne de gado e sem pão, deixando as donas de casa exasperadas. Uma tarde, ele estava jogando dominó, no bar do Armando, na esquina da Carolina com a Xavier, quando uma moradora nova do bairro - dona Bebé - se aproximou:



- "Santo Deus! O que é que eu faço prá conseguir, pelo menos, um quilo de carne?"



- "Uns choram porque têm de menos, outros porque têm de mais", respondeu enigmático João Barbosa, enquanto embaralhava as pedras de dominó. Dona Bebé, curiosa, pediu mais explicações. Ele inventou na hora: seu filho mandara de Coari a metade de um boi. Sem geladeira, a carne poderia apodrecer. Que ela fôsse lá, no número 38, e falasse com dona Elisa, sua mulher, para lhe vender uns quilos. Mas que gritasse, porque sua mulher era um pouco surda.



Armou e ficou na esquina, com a curriola do dominó, vendo o circo pegar fogo. Pegou mesmo. Dona Elisa, coitada, num calor infernal, cuidando da casa e dos filhos, numa trabalheira doida, viu aquela mulher invadir sua casa como se fosse um açougue, pedindo aos berros carne, que ela - dona Elisa - não comia há meses. Quase sai porrada.



Eram brincadeiras ingênuas. A qualquer mulher jovem, cujo nome ele desconhecia, chamava de Beatriz, e engatilhava logo um versinho: "Beatriz, não foi feliz porque não quis". Um dia, vestiu uma batina de padre e, para a alegria das moças, saiu pelo beco, confessando todas as beatrizes da rua. Foi uma festa. Às vêzes, convidava a comadre Sebastiana para um xaxado na Paraíba, e entrava no beco, cantando, com os filhos fazendo coro: "A, E, I, O, U, Ipisilone".



Nunca saiu de Manaus. Minto. Saiu uma única vez, quando conquistou o título de campeão de dominó do torneio do Apostolado da Oração. Ganhou uma passagem para Itacoatiara, onde deveria passar três dias, enfrentando os campeões locais. Chegando lá, não ficou nem duas horas. Pegou o primeiro barco de volta. Entrou em casa de madrugada, aos prantos, beijando filho por filho, em cada rede e dizendo:



- "O papai nunca mais faz isso com vocês". Parecia uma galinha chocando os seus pintinhos.



Depois disso, só "viajou" através das leituras dos romances. Adorava "Os Miseráveis" de Victor Hugo, "O Ferreiro da Abadia" de Ponson du Terrail, e "Eurico, o Presbítero" de Herculano. Deixou como herança o gosto pela literatura e, sobretudo, a alegria de viver, que na verdade é mais do que um patrimônio familiar. É uma forma de resistência popular, contra o sofrimento cotidiano, do joão-ninguém, de tantos barbosas anônimos. Seu heroísmo está justamente na capacidade de arrancar o riso de qualquer situação, como barreira contra a infelicidade.



Ao contrário da Beatriz, João foi feliz, porque quis. "Nasci nu e pobre, agora estou vestido e tenho 12 filhos", esse era o emblema singelo de sua felicidade. Eu sou um dos herdeiros, leitor (a). Resolvi lembrá-lo porque hoje faz trinta anos que ele morreu num leito da "Beneficente", contando piada. Aí, me invadiu uma saudade danada..


*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blogTaqui pra ti e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.

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Agradeço ao companheiro Bessa por me enviar este belíssimo texto de presente para o blog. Foi escrito em 1995, porém será eternamente atual. Trata-se de uma homenagem que o Bessa fez ao seu pai (que, segundo ele, foi um "anti-herói, um tipo de herói") e, como sabemos, dia dos pais é todo dia.

2 comentários:

Kais Ismail disse...

Ainda que com febre e dor de cabeça, começei a leitura rindo muito. Mas, no final, me deu um nó na garganta.
Parabéns por ser um dos 12!!

jader resende disse...

Uma apaixonada visão da alegria de viver. belo e contagiante conto.
Abraços

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