Por Rui Martins (*)
Berna (Suiça) - De todas as dúvidas e incertezas, guerra de comunicados e de vídeos, sobre a frotilha dita humanitária, uma única coisa certa e verdadeira aparece – a emergência da Turquia no cenário do Oriente Médio.
Não se pode dizer ser novidade, porque o império turco-otomano ali dominou por seis séculos. Essa a razão pela qual nossos avós qualificavam todos os emigrantes vindos da região, desde libaneses, persas aos árabes como turcos.
E a nota marcante de um retorno de uma supremacia da Turquia na região é a de ser um país democrático (o que não é a norma naqueles lados), cujo poder político é vigiado pela Justiça e pelas Forças Armadas, e sem se deixar dominar pelos religiosos, como ocorre no Irã, pois é um país laico.
Essa emergência turca é decorrente de um clima de deterioração dos antigos detentores da supremacia. O Egito soube manter uma liderança na região tanto como potência de esquerda na época do panarabismo ateu de Nasser, como ao mudar de posição com os presidentes Sadat e Mubarak. Impedindo a propagação islamita fundamentalista dos Irmãos Muçulmanos, que acabou sendo exportada, o Egito pôde atuar, durante anos, como mediador nas crises envolvendo Israel e a questão palestina.
O Iraque, outra grande potência, foi praticamente aniquilado pelos EUA que, procedendo como um mau jogador de xadrez, não viu ao derrubar Sadam Hussein, ressurgir o Irã. Resta a Síria, porém sem a mesma força do passado, comprometida com a colonização do Líbano e pelas relações com o Irã.
Erdogan sabe navegar melhor que as frotilhas, pois suas vibrantes condenações de Israel não significaram que defendesse o Hamas, teocrático e fundamentalista, quando sua história o aproxima muito mais do Fatha também laico de Arafat, hoje minoritário entre os palestinos.
Coincidentemente, o Brasil faz parceria com a Turquia na tentativa de se acalmar os ânimos mundiais com relação ao propalado risco de um Irã dotado de bombas nucleares. Essa parceria poderá sustar a tentação americana de corrigir o êrro da destruição do Iraque com uma destruição do Irã.
Lula também vê o Brasil emergente e procura fortalecer a posição internacional brasileira, fugindo de encenações extremas, nisso exercendo seu dom de ser capaz de negociar com deus e o diabo.
Entre o extremismo islamista e a cultura laica ocidental, Erdogan poderá usar a emergência turca para lançar a idéia de uma modernização muçulmana oposta ao extremismo da sociedade saudita. Uma grande parcela da esquerda brasileira tem optado pela defesa sem críticas do islamismo fundamentalista que, na verdade corresponde ao apogeu obscurantista da Idade Média cristã, com a agravante de não haver em vista nenhum Erasmo, nenhum Voltaire e nenhum Lutero para propor um reexame, uma crítica e uma reforma.
Uma coisa é entender os resistentes afegãos, iraquianos e palestinos contra invasões e ocupações, outra é defender a ideologia professada por seus líderes, que não é de esquerda mas um retorno a situações extremas, já resolvidas em numerosas lutas sociais desde a Revolução Francesa e Revolução de Outubro de 1917.
*Rui Martins é jornalista. Foi correspondente do Estadão e da CBN, após exílio na França. É autor do livro “O Dinheiro Sujo da Corrupção”, criador dos “Brasileirinhos Apátridas” e da proposta de um Estado dos Emigrantes. É colunista do site “Direto da Redação” e vive em Berna, na Suíça, de onde colabora com os jornais portugueses Público e Expresso, e com o blog “Quem tem medo do Lula?”
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