A negação da vida e a afirmação da destruição
Por Renato Prata Biar (*)
Os Estados Unidos, sob o governo do Nobel da Paz, Barack Obama, propôs para 2011 um orçamento para gastos e investimentos na área militar e bélica de 708 bilhões de dólares – o maior de toda a história. A pergunta é: para quê e por que tanto investimento em armas e tantos outros artefatos de guerra, num país que já possui o maior arsenal bélico e nuclear do mundo? Mundo esse que, é bom lembrar, não possui mais o muro de Berlim e nem a União Soviética para ameaçar o “paraíso” capitalista sobre a Terra.
A resposta para isso não passa por nenhuma mirabolante teoria da conspiração ou algo parecido. A resposta está exatamente no modo de produção capitalista e na sua dinâmica para produzir a destruição. Mas para esclarecer melhor essa afirmação, não devemos esquecer que o capitalismo é um sistema que prioriza o lucro em detrimento de qualquer outra coisa, inclusive da vida e do bem-estar da grande maioria da população mundial.
Outro fato importante para relembrarmos é que toda a riqueza que se produz nesse ou em qualquer outro sistema provém do trabalho humano. Mas no capitalismo o trabalhador é uma mercadoria que se compra como outra mercadoria qualquer e, por isso, é também um custo para o capitalista, que necessita dele para agregar valor às suas mercadorias – e o valor desse custo é o salário que é pago ao trabalhador. Como uma das maneiras de se conseguir aumentar o lucro é através da redução de salários, nós podemos concluir que a base salarial da grande maioria dos trabalhadores será sempre o mínimo possível. Ou seja, será sempre o suficiente para que o trabalhador não morra de fome e consiga repor energia suficiente para reproduzir sua força de trabalho dia após dia em benefício do capitalista. É por esse motivo que Marx já dizia que o trabalhador não recebe pelo seu trabalho, ou seja, ele não recebe de acordo com aquilo que ele produz, pois o que o capitalista compra dele é sua força de trabalho e não o produto resultante desse trabalho. Um economista inglês chamado Pigú, que sucedeu Alfred Marshall em Oxford, na Inglaterra, chegou ao cinismo de elaborar uma teoria em que dizia que, salário zero ou negativo asseguram o pleno emprego. Ou seja, se o trabalhador aceitar trabalhar de graça ou pagar para trabalhar ele jamais ficará desempregado. O desemprego, segundo esse “gênio”, não é um problema do capitalismo, mas ocorre por uma recusa do trabalhador em aceitar as condições de trabalho que lhes são oferecidas. Isso é de um cinismo que somente os ingleses poderiam produzir...
Bem, mas essa condição de baixos salários cria uma das muitas contradições existentes no capitalismo que é o seguinte. Como a tendência dos salários é sempre a de ser reduzido ao máximo possível, acaba-se por criar um limite muito estreito na capacidade de consumo da classe trabalhadora. A conseqüência disso é que a produção se volta para artigos de luxo (buscando aqueles que detêm o maior poder de compra) e também obriga o capitalista a frear, reduzir sua produção (a oferta) por não haver condições de consumo por parte da maioria da população (a demanda). Essa redução da produção, também classificada como aumento da capacidade ociosa das máquinas e equipamentos, é o que evita que o capitalismo entre numa crise de sobre-acumulação; que nada mais é do que um nível de oferta maior do que a demanda. Quando há uma crise de sobre-acumulação, seu primeiro e mais grave sintoma é a deflação. A deflação é a crise mais temida pelos capitalistas porque ela leva a uma queda contínua no preço das mercadorias (numa corrida para a obtenção de qualquer taxa de lucro ou de simplesmente evitar o prejuízo total) e também uma conseqüência que vai de encontro com toda a lógica do capital, que é o aumento contínuo no poder de compra dos salários, já que o preço das mercadorias está sempre caindo. É bom lembrar que, embora a deflação implique na queda de preços e no aumento do poder de compra dos salários, isso não significa que o trabalhador irá viver no melhor dos mundos, pois para reduzir os prejuízos uma das primeiras medidas tomadas pelo capitalista será a de reduzir seus custos. Em outras palavras: desempregar o máximo possível.
O que nós temos, portanto, é um sistema que, por mais paradoxal que possa parecer, tem como sua maior contradição a sua própria eficiência. Explicando melhor. O capitalismo, que tem como sua principal característica a produção de mercadorias, não pode realizar essa produção de acordo com sua capacidade, pois colocaria em risco a sua própria existência. É como um corpo que produzisse sangue demais e suas veias e artérias não são suficientes para circular tamanha quantidade de sangue. O que leva a uma necessidade de se fazer algumas sangrias para suportar a pressão. A sangria capitalista se dá exatamente na produção para a destruição, onde se nega a produção para as reais necessidades humanas e se afirma a produção para artigos inúteis e destrutivos. Nega-se a vida para se afirmar o lucro. Como escreveu Marx em seu livro, A Ideologia Alemã: “No desenvolvimento das forças produtivas, ocorre um estágio em que nascem forças produtivas e meios de circulação que só podem ser nefastos no quadro das relações existentes e não são mais forças produtivas, mas sim forças destrutivas.”
Bem, é exatamente esse deslocamento da produção para artigos inúteis e para a destruição que nos fará entender como e por que os Estados Unidos produzem tantas armas e gastam tanto dinheiro, tempo, trabalho e vidas na produção dessa negatividade.
O capitalismo primário, da época da primeira Revolução Industrial, era um sistema bi-setorial – havia o setor de máquinas que produziam máquinas e o outro setor de máquinas que produziam produtos, mercadorias. Esse tipo de capitalismo bi-setorial foi o que entrou em decadência no final do século XIX e faleceu de vez com a crise de 1929. É a partir daí e, mais precisamente, com o advento da 2ª Guerra Mundial que o capitalismo de três setores decola de uma vez. Mas, o que é o terceiro setor? É exatamente aquele que irá produzir o que o economista Lauro Campos chamava de não-mercadorias, não-meios de produção e não-meios de consumo. Para um melhor entendimento do que esses termos significam, remeto-me ao próprio L. Campos em seu livro: A Crise Completa: a economia política do não. Diz o autor:
“A não-mercadoria é a forma que assume o resultado das relações sociais de produção, a partir de certo estágio das forças produtoras de mercadorias, na qual se materializa o trabalho humano improdutivo, e representam o desvio de parte da potência social de trabalho para atividades não-reprodutivas: não-meios de consumo individual e não-meios de consumo produtivo. No terciário, não tecnicamente necessário ao processo coletivo de trabalho e no resultado da produção capitalista que se situa ‘fora do comércio’, isto é, na parte que constitui monopsônio do governo, subjazem as relações sociais de produção de não-mercadorias. Impossibilitada de assumir a forma mercadoria, devido à insuficiência da capacidade de consumo da coletividade, tal como se apresenta condicionada pela distribuição de renda no regime capitalista, uma parcela crescente das forças produtivas é sistematicamente desviada da esfera da produção e da reprodução. Assume a forma de não-mercadorias, não-meios de consumo individual e não-meios de consumo produtivo, inacessíveis aos consumidores finais de mercadorias. Representa sua produção uma redução da sua taxa de desenvolvimento das forças produtivas. Isto significa que, ao lado das mercadorias que destruíram parcial ou completamente a forma produto no processo histórico de do modo capitalista de produção, se instaura a produção de não-mercadorias, na qual subjaz o trabalho humano desviado da esfera da produção, e que são adquiridas apenas pelo governo.”
Para ilustrar melhor essa citação, podemos retomar o exemplo da 2ª Guerra Mundial. O que salvou o capitalismo após o crash da Bolsa de 1929 não foi nenhum milagre e muito menos atitudes honradas, heróicas e honestas dos grandes governantes; foi a guerra que salvou o sistema capitalista. De que maneira? F. D. Roosevelt (presidente dos Estados Unidos de 1933 – 1945) em seu livro: Meus Mil Primeiros Dias, afirmou que o que ele estava fazendo nos Estados Unidos era a mesma coisa que Hitler estava fazendo na Alemanha. E o que ambos fizeram foi direcionar grande parte das suas forças produtivas para a fabricação de bombas, tanques, aviões, navios, armas, roupas e outros tantos artefatos de guerra. Ou seja: a produção voltada para a destruição e para a produção das não-mercadorias que só podem ser consumidas pelo próprio governo, que nega, assim, o consumo individual e social. Foi dessa maneira que Hitler praticamente acabou com o desemprego de 33% na Alemanha na década de 1930, e Roosevelt acabou com o desemprego de 25% nos Estados Unidos na mesma época.
A prova mais irrefutável da necessidade do capitalismo de investir nas não-mercadorias, não-meios de produção e não-meios de consumo é que mesmo com o fim da 2ª Guerra Mundial não só não foram reduzidos os investimentos nesse setor como, pelo contrário, sob a desculpa da Guerra Fria, os investimentos nesse setor aumentaram vertiginosamente. Foi durante esse período da Guerra Fria que se consolidou nos Estados Unidos o Complexo Industrial-militar-acadêmico, que investe anualmente bilhões de dólares em pesquisas e testes químicos, físicos e biológicos para a criação de novas armas e artefatos de guerra, cada vez mais eficientes e mais poderosos, e também o aperfeiçoamento de técnicas, táticas e estratégias de guerra. E mesmo com o fim da União Soviética e, consequentemente, o fim da Guerra Fria, em momento algum esses investimentos bilionários foram reduzidos ou sequer congelados.
É a partir dessa análise que podemos também entender porque os Estados Unidos – mesmo tendo sido avisados com anos de antecedência por várias fontes diferentes (como o serviço secreto francês e o serviço secreto alemão, dentre outros) – deixou que acontecesse o atentado de 11 de setembro, como deixa claro o livro de L. A. Moniz Bandeira, Formação do Império Americano (págs: 652-653):
“Os jornalistas Evan Thomas e Mark Hosenball revelaram, na revista Newsweek, que um dia antes dos atentados, ou seja, em 10 de setembro, altos oficiais do Pentágono subitamente cancelaram planos de viagem para a manhã seguinte, aparentemente por causa de segurança. O estado de alerta já havia sido dado durante as duas semanas passadas e um aviso urgente foi recebido pelo Pentágono na noite anterior a 11 de setembro, o que levou o primeiro escalão de oficiais do Pentágono a suspender seus planos de viagem. Ao que tudo indicou, eles souberam não apenas da ameaça iminente, mas do momento, e trataram de protegerem-se eles mesmos.”
Com o fim da ameaça comunista era preciso criar um novo inimigo para colocar a população em pânico (nesse sentido, indico o documentário do cineasta Michel Moore: Fahrenheit 11 de setembro) e, assim, justificar os gastos cada vez maiores do Complexo Industrial-militar –acadêmico, espinha dorsal do sistema econômico estadunidense. A criação desse inimigo foi prontamente conseguida com o atentado de 11 de setembro. O inimigo de agora é ainda mais cruel e difícil de combater, pois não tem rosto, pátria ou ideologia, mas apenas o ódio pelos estadunidenses. Portanto, o inimigo pode ser qualquer um e estar em vários lugares ao mesmo tempo. O que só aumenta o medo e o pânico da população que cede cada vez mais da sua liberdade em troca de uma segurança inexistente. Um pesadelo para a população e um sonho para aqueles que lucram com essa ordem das coisas.
Destarte, podemos agora entender um pouco melhor o apelo de Barack Obama ao Congresso estadunidense para que seja aprovado o maior orçamento bélico (para o curto período de um ano) de toda a história dos Estados Unidos e, provavelmente, do mundo. Possuidores de um arsenal nuclear capaz de destruir vinte e cinco vezes o planeta Terra e com bases militares espalhadas em todos os continentes, ainda querem nos convencer que quem ameaça a paz e a vida no planeta são países como a Venezuela, o Irã, o Afeganistão, etc. Talvez o patético Fukuyama, aquele que declarou durante a década de 1990 o fim da história e a vitória final e triunfante do capitalismo, não esteja de todo errado. Pode ser que em breve vejamos realmente o fim da história, porém, sem a vitória do capitalismo ou de qualquer outro sistema, pois será também o nosso fim. E se a nossa história está realmente fadada a acabar dessa maneira, melhor seria se tivéssemos permanecido como meros macacos...
*Renato Prata Biar é historiador, pós-graduado em filosofia. Mora no Rio de Janeiro e é colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?".
Um comentário:
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