1ª Parte: A Decisão do Supremo Tribunal Federal
Agradeço aos amigos Celso Lungaretti e Paulo Menna Barreto algumas observações fundamentais que melhoraram minhas idéias sobre este complexo problema.
Por Carlos Alberto Lungarzo (*)
Os recentes julgamentos do Caso Battisti e, depois, da ação da OAB sobre a Lei de Anistia de 1979, mostram que o Supremo Tribunal é muito eclético, uma espécie de “prato variado”, onde existem membros de todos os estilos:
1. Juízes que condenam ambos, culpados e inocentes (Lewandowski e Britto)
2. Juízes que absolvem ambos, inocentes e culpados (Marco Aurélio, Carmen Lúcia, Eros Grau)
3. Juízes que só condenam inocentes, mas absolvem culpados (Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cézar Peluso). Não incluo a Celso de Mello porque ele se absteve no julgamento de Battisti, mas já tinha manifestado antes sua decisão de modificar a jurisprudência para “fritar” Battisti.
4. Juízes que absolvem inocentes e (possivelmente) condenam culpados. Este seria o caso de Joaquim Barbosa, mas não podemos ser categóricos porque esteve afastado nesta última sessão.
Bertold Brecht disse uma vez: “Coitados os povos que precisam de heróis”. Acho que nós poderíamos dizer: “Coitados os povos que precisam de uma Corte Suprema”.
A Odisséia do Relator
Apesar de sua notória boa vontade, o relator Eros Grau não pode controlar sua fixação fenomenológica e hermenêutica, que se apresenta em muitos de seus arrazoados, às vezes citando Gadamer (como no caso Battisti), outras vezes Hartmann (como agora), e quase sempre fazendo referência ao “mundo da vida” (o Lebenswelt de Husserl).
Este ponto merece alguma reflexão. O interesse de Grau pela filosofia parece ter muito a ver com seu humanismo, e contribui, em boa medida, a tornar menos pesada a truculenta língua juridiquesa. Entretanto, é importante ter em conta que um juiz tem sob seu controle a liberdade e a vida de milhares de pessoas, e que (contrariamente ao que acontece) o direito deveria ser objetivo, público, transparente, socialmente adequado e ético. Ou seja, uma atividade próxima da científica, embora de natureza diferente.
Considerar o direito assunto de opinião e divagação, como se fosse filosofia, é um risco mortal para a sociedade. É inofensivo discutir, numa aula de filosofia, “se é mais forte o efeito ou a causa”, já que o perigo é apenas encaminhar alguém ao psiquiatra. No entanto, divagar sobre as leis transforma em brincadeira a vida e liberdade de todos.
Historicamente, os juízes foram sacerdotes, reis, senhores feudais e, quando a justiça virou uma área especializada do estado, separada do governo, os julgadores passaram a ser eleitos ou designados por um mecanismo arbitrário, obscuro e não consensual, mesmo nos países democráticos. Só agora, algumas democracias avançadas estão “experimentando” com a possibilidade de eleger os juízes por voto popular.
Mas quero apenas enfatizar que, como relator, Grau conduziu o processo sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 (ADPF 153), ajuizado pela OAB e a AJD, e os vários amici curiae, pelo caminho da especulação afastada de todo realismo. Estamos falando de centenas de pessoas mortas, de milhares de presos e torturados, de dúzias de milhares de carrascos unidos pelo ódio e a violência que, com falta de atividade no Brasil, compartilham as atrocidades internacionais. Não estamos falando de noémas difusos das hierarquias do ser, ou de outras abstrações metafísicas, mas da dor de muitas pessoas.
Através de numerosos meandros, Grau desqualifica as críticas da ADPF contra os preceitos fundamentais violados, parecendo responder a perguntas que não foram formuladas e levanta impossibilidades (como a de que o judiciário modifique a lei), que nunca foram pretendidas. Não parece existir má fé, mas apenas a liberdade de rechear com suas próprias fantasias ou obsessões, respostas a questões não colocadas.
Para começar, a crítica dos atores contra a ambigüidade do §1 do art. 1º é, sim, um problema lingüístico e não de norma. Que significa “crime conexo”? A pergunta é perfeitamente legítima, mas foi respondida com uma série de divagações. Esta dificuldade foi percebida, acredito, por Lewandowski, que, com o voto mais preciso da sessão, indicou a necessidade de considerar casuisticamente a natureza dos crimes. (Não em vão provocou a histeria do presidente).
Vejamos um exemplo: o genocida israelense Dan Halutz poderia dizer que o bombardeio de 23/07/2002 contra um edifício civil em Gaza, era um “crime conexo” com seu crime político principal: matar Salah Shahade, segundo comandante do Hamas, que dormia com sua família num apartamento do prédio. Pode sustentar-se que matar um dirigente de um grupo armado contra o qual lutava, era sim um objetivo político. Ora, o ataque ao prédio, que matou 14 civis, dos quais 9 eram crianças, seria um crime conexo, absolutamente necessário. Sem essas 14 vítimas, matar essa mesma noite a Salah teria sido impossível. No Brasil, Halutz seria anistiado, o que não chama a atenção, porque carrascos do exército brasileiro muito piores que ele são tratados como heróis e até deram nomes a ruas, pontes e bairros.
Grau tampouco responde solidamente à objeção de que a lei 6683/79 afronta o direito de informação. A anistia que ela implanta é um total esquecimento, do qual sairão beneficiados aqueles que não têm nada para lembrar, como os criminosos militares e civis. O parecer do Procurador Geral, citado com encômio diz algo que poderia ser verdade: “é evidente que reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia não significa apagar o passado”; aliás, seria verdade no caso de outra lei, mas não de essa. Uma anistia pode permitir o estudo do passado, mas esta faz o contrário. Por sua ambigüidade deliberada (como muito inteligentemente denuncia a OAB), ela bota uma pedra na questão que tampa todos os envolvidos. Para alguns, essa pedra será uma proteção; para as vítimas, uma lápide.
Aliás, isto pode provar-se de maneira mais factual. Os milicos começaram a chiar quando se falou de Comissão de Memória, que é apenas uma entidades que esclarece o passado, mas não tem atributos para punir ninguém.
A objeção de que o estado se comporta como criminoso, abalando o princípio de republicanismo, é a mais importante, talvez, das apresentadas na ADPF, mas ela pode ainda tornar-se mais forte. Quando o estado atua criminalmente, se destruí não apenas o republicanismo ou a democracia, mas a noção de civilização e de humanidade. Pode viver-se moderadamente sem democracia e sem república, mas não sem civilização. Ao ser o estado entendido como produto de um pacto social (aliás, sempre desigual e arbitrário, mas melhor do que nada), se ele atua criminosamente, está santificando a violência da classe dominante contra o resto da sociedade, impede diferenciar o lícito do ilícito, e transforma os cidadãos em absolutamente indefensos, pois, a quem podemos reclamar pelos crimes do estado, sendo que não existe um verdadeiro poder jurídico internacional?
O estado criminoso é muito mais que anti-republicano. Torna sem sentido a vida civilizada, e constitui a brutalidade em sua forma mais pura. Por sinal, vale lembrar, mesmo como anedota, que, para os intelectuais e pensadores humanistas da antiga Roma, civitas e castrum eram exatos opostos: o militarismo era o contrário perfeito da civilização. É por isso que mesmo que a ditadura brasileira tinha possuído uma participação de civis maior que qualquer outra conhecida, seu cerne só podia ser militar-policial. Um civil não possui meios para desenvolver tamanha barbárie, mesmo que o deseje.
O relatório deste julgamento não é, como foi o do caso Battisti, um acúmulo de dados quaisquer cuidadosamente direcionados para degradar a tese da defesa. É um simples estouro de idéias que parecem ter sido produzidas como respostas instantâneas às argüições. No clímax, o relator diz algo que, se for “traduzido”, significaria isto: objetar a legitimidade dos atos da ditadura levaria a ficar sem leis, porque todas as dessa época foram produzidas pelos militares. Além disso, há uma insistência difusa no fato de que um tribunal não faz leis. Mas, quem pediu ao STF uma nova lei?
O que se pedia é o que se pretende de qualquer agente jurídico: interpretar a lei. O STF deveria responder a uma pergunta que (bem formulada) seria a seguinte:
“Sendo que o §2º do art. 1º restringe o alcance de “qualquer natureza” do §1º, e sendo que o art. 1º está referido a ‘todos quantos...’, significa isso que os agentes do estado, atuando nas tarefas de repressão, que cometeram os crimes excluídos pelo §2º, também estão excluídos da anistia?”
Ou, então:
“O §2º que, textualmente, diz
Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal
deve interpretar-se ipsis verbis, ou deve ser interpretado assim:
Excetuam-se dos benefícios da anistia os que, não sendo agentes do estado, cometeram crimes... ?
O objetivo era esclarecer essas palavras e não inventar nenhuma nova lei. Ou seja, na lingüística das fardas e baionetas, todos são todos? Ou será que todos (os excetuados) são todos os opositores, mas nenhum dos carrascos?
O relatório de Grau é uma triste culminação para sua carreira de magistrado, e para suas lembranças de vítima da ditadura, que devem ter influído, imagino, em sua emoção final. Não penso que ele, Marco Aurélio e Carmen Lúcia tenham votado dessa maneira por oportunismo ou por medo. Creio que a desmoralização produzida pela passagem da ditadura a uma democracia condicionada e cartorial, admitida sem objeção durante décadas, montada num circo de leis que não se cumprem, de “preceitos” que se violam, de apelações aos DH permanentemente ignorados, deve conduzir a uma espécie de nihilismo.
É significativo perceber como a enorme barbárie do período militar deixou nas pessoas mais honestas um sentimento de “sem-sentido”, algo assim como que votar em favor ou contra, tanto faz. Estes três juízes pareciam desejosos de não ser considerados tolerantes com as torturas. Marco Aurélio teve até uma lembrança para seus colegas desaparecidos da época de estudante.
Por outro lado, é correta a objeção levantada por alguns militantes de DH, que a questão deveria ter sido levada ao congresso antes de levar-la à justiça. A oposição da maior parte do governo (salvo Vanucchi e Genro) e de sua base aliada faria fracassar esse projeto, mas cabia a possibilidade de uma ação de conscientização popular mais ampla e de denúncia internacional mais eficiente.
O Formato da Anistia
Na Lei 6683 não se fala explicitamente nem de agentes da repressão, nem de vítimas da mesma. Fala-se de “todos”. Essa generalidade foi indicada por Marco Aurélio de Mello para mostrar que a lei não estava excluindo os militares.
É possível que exista uma razão para esta forma ambígua. Os algozes não se referem a eles próprios em sua condição de detentores do poder. Quando a lei se refere a “militares”, estes são mencionados como vítimas da AI5, de atos de demissão, de expedientes sigilosos, ou de outros prejuízos. São os militares democráticos e não os da ditadura. Este ponto foi bem salientado por Carlos Britto.
É muito provável que a gangue que mantinha o poder pensasse que ninguém ousaria tentar processar-los. Portanto, não precisariam anistia. Parece certo que nenhum deles teve jamais esse temor, até porque a cidadania que pedia democracia, liberdade, eleições diretas, aparição dos seqüestrados, etc., não se pronunciava, se estou lembrando bem, sobre a necessidade de punir os algozes, pelo menos, não de maneira massiva. Os 8 anos (78-85) de “apertura lenta e gradual” desarmaram os espíritos (só os do povo, porque os dos fascistas estão armados até hoje).
Foi, por tanto, uma clara anistia unilateral. Foi dada pelos donos de poder às vítimas de seu ódio, às quais prometiam que a perseguição seria extinta. Nada menos parecido a uma anistia concertada bilateralmente.
Os argumentos da AGU e da PG são forçados demais como para pensar que seus titulares os formularam por inocência ou distração. É claro que ambas se afinam não apenas com o governo em particular, mas com o lobby militar comandado pelo ministro da Defesa.
Os membros da ditadura, civis ou militares, estavam certos ao pensar que ninguém iria propor que eles pagassem por seus crimes. Com efeito, durante os primeiros anos de democracia, nunca percebi a existência de uma proposta significativa em prol do julgamento dos militares. Naquele período, até pouco antes da Constituinte, teria sido muito útil promover o julgamento contra os autores de tortura, estupro, genocídio, sequestro e afins. No caso (possível) de que não fossemos esmagados por um novo golpe, o poder das casernas seria enfraquecido, e se tornaria menos forte a tutela que, desde essa época, os fardados continuam exercendo sobre o estado, embora o façam de maneira sutil e sem alarde.
Qualquer que fossem os pensamentos dos que redigiram e lei 6683, é verdade que esta não protege os crimes de lesa humanidade.
Com efeito, pode mostrar-se que a lei não protege esses crimes com um argumento muito simples, que o mesmo relator deixou transparecer.
Ele disse que a lei de anistia era para todos e, portanto, não podia excluir os repressores. Se a Lei se aplica tanto a perseguidos como a perseguidores, então, também para ambos os casos, deve valer o §2 do art. 1º. Ele exclui terrorismo, assalto, seqüestros e atentados. Ora, se os repressores tivessem cometido atos de terrorismo e sequestro, também deveriam ser excluídos da anistia.
Será que o relator não descobriu que as ações dos militares constituem um exemplo típico de terrorismo de estado? Nunca foi informado de que terrorismo é uma ação que pode ser exercida tanto por particulares como por membros do poder público?
E, acaso os militares não cometeram sequestros? Como eram capturadas as vítimas da repressão? A mesma juíza Carmen Lúcia, num certo momento de seu discurso, pronunciou a palavra “sequestros”, expressão correta para se referir aos atos de apreensão ilegal de pessoas que depois desapareceram. Não foi dito com essas palavras, mas acho que isso foi pensado por Lewandowski e por Britto para tirar suas conclusões.
A Lei 6683, ao rejeitar explicitamente a proteção de crimes específicos, e dizer que a Anistia vale para todos, permite deduzir, trivialmente, que, como os militares estão entre “todos”, aqueles que cometeram terrorismo de estado e sequestros também estão fora da Anistia.
A Anistia como “Compromisso”
A anistia não foi um compromisso entre vítimas e algozes. Primeiro, porque ninguém ignora que, no Brasil (junto com o Peru), as grandes massas populares são mais invisíveis que em quaisquer outros locais da América do Sul, apesar de que as elites argentinas ou chilenas sejam mais predatórias. Favelados, povoadores pobres, camponeses, paus de arara, não tinham a menor participação na vida cidadã.
Dizer que a anistia foi um compromisso bilateral, é como dizer que dois leões que capturam ao mesmo tempo uma zebra, negociam para evitar a briga e decidem comer cada um deles a metade do bicho. Mas, vocês diriam que isso foi um compromisso entre a zebra e os leões?
Ainda pior: mesmo o movimento popular organizado, os operários, os trabalhadores da classe média (como bancários, funcionários públicos), os estudantes, os intelectuais e profissionais anônimos, ficaram fora de qualquer negociação. Quando alguns juízes disseram, durante a apreciação da ADPF, que brasileiros notáveis foram chamados pela ditadura para assumir o compromisso da anistia, eles se estão referindo, por um lado, àqueles que representavam a parte civil da ditadura, como Miguel Reale, Paulo Maluf, José Sarney e muitos outros. Do outro lado, estavam os coronéis urbanos que encarnavam a democracia tolerada pelo sistema, como Montoro, Neves, e até o próprio FHC, que a maioria militar reconheceu tardiamente como alguém que não era um verdadeiro inimigo. Os notáveis da esquerda não puderam ser convocados. Arraes, Brizola, Gabeira e muitos outros estavam fora, mas não era por própria vontade.
A anistia foi imposta pela chantagem, e o fato de que a esquerda (que depois se fusionaria no PT e permaneceria dentro dele por bastante tempo) a aceitasse obedece às mesmas razões que uma pessoa cujo filho foi seqüestrado aceita uma chantagem para salvar sua vida. Sem anistia, dúzias de presos políticos continuariam sofrendo e milhares de emigrados não poderiam voltar. Todos nós, naquele momento, celebramos aquele fato. Aliás, o momento da anistia foi de enorme emoção, porque apesar de (ou, quem sabe, a causa de) que o Brasil tinha a classe popular mais sistematicamente excluída da região, ao mesmo tempo parecia o primeiro país que teria uma esquerda viável e massiva. (O que aconteceu depois, todos sabemos.)
As provas deste tipo de “arranjo” e chantagem, que em nada parece ao que ridiculamente chamou-se “compromisso bilateral”, são múltiplas. Por exemplo, o primeiro sucessor do ditador Figueiredo foi o “democrático” Sarney, que foi presidente da ARENA e garoto de recado dos militares. Por sua vez, o decadente e solitário ditador não concedeu eleições direitas porque não estavam previstas na Constituição (Emocionante legalismo!). Sarney representava, por meio de eleições indiretas, depois da morte de Neves, a parte mais “avançada” da nova democracia. O outro candidato era nada menos que Paulo Maluf!
Como se pode pretender que, no meio a tamanho cambalacho, num clima em que apenas umas poucas das mais infamantes instituições da ditadura foram desativadas (como o DEOPS), os políticos iam reconhecer que os militares eram criminosos e deviam ser punidos?
Nefastos personagens da repressão, como altos funcionários policiais e militares reformados, assumiram postos nas estruturas democráticas, como cargos de senadores e deputados. Milhares de empresários que financiaram tortura, sequestros e assassinatos continuaram progredindo, sem, pelo menos, uma exposição pública como aconteceu com Krupp e outros na Alemanha pós-nazista. Jornalistas e intelectuais coniventes com a ditadura continuaram envenenando a opinião pública. Salvo por algumas medidas importantes, porém isoladas, pouco mudou. Aliás, como fizeram notar vários observadores sociais, para certa parte do povo a situação piorou, porque ante a impossibilidade de torturar presos políticos, aumentou o terror policial contra povoadores pobres e setores marginalizados.
A anistia não foi nenhum pacto, mas uma saída da ditadura, cuja outra opção estava fora de seu tempo adequado: exacerbar a repressão até o extermínio.
Com efeito: as greves de metalúrgicos dos anos 70/80, os movimentos de portuários, de bancários, e de outros sindicatos conscientes, produziram terror na classe média alta e, especialmente, na burguesia. Estava sendo repetido, segundo eles, o modelo de Jango. Em realidade, aquelas greves e passeatas lembravam muito a agitação européia como foi descrita vividamente por Marx e Engels, e mostrava a existência de um movimento operário novo, que não estava dirigido por pelegos, como na Argentina e no antigo Brasil, mas que se parecia muito aos do Uruguai e do Chile, onde a esquerda assustou seriamente às elites.
A burguesia tinha duas alternativas: (1) Repressão feroz, sem quartel, até dizimar seus inimigos, como na Argentina ou no Chile. Mas isso era incompatível com a visibilidade de Brasil e com o clima de decadência das ditaduras. Aliás, ficavam dúvidas sobre o potencial de crueldade das forças repressivas brasileiras. (2) A democratização, já vislumbrada a meados dos 70. Para tanto, era necessário prometer sossego aos perseguidos, porque a esquerda brasileira, apesar de não ser grande, tinha demonstrado uma moral revolucionária e uma capacidade de luta equivalente às mais avançadas do mundo, como no Uruguai, no Chile e na Europa. Se a brutalidade continuava, a resistência se manteria até o último combatente.
Legitimidade e Retroação
Um problema latente a toda a discussão é o da legitimidade do poder que produz uma lei. Embora demorou muito em afirmá-lo, a OAB está certa no sentido de que a 6683 foi aprovada por um congresso submisso. Mas, o que o STF parece aceitar é que a legitimidade de um governo provém simplesmente de sua possibilidade física de sustentar-se no comando. Ou seja, brevemente, na força.
Esta é uma solução pragmática, que nada tem de ético, embora domine na maioria do planeta. Obviamente, ninguém pode levar a exigência de legitimidade ao extremo de derrogar todas as leis propostas pela ditadura, porque o país afundaria. A mudança de “cruzeiro” para “cruzeiro novo” não é iníqua e seria absurdo aboli-la. Mas as leis sobre DH são diferentes das outras, pois os DH são diferentes dos outros, porque o sofrimento que produzem as violações desses direitos é diferente dos problemas que produzem as violações do direito mercantil, do direito de navegação ou do direito de pesca.
Uma anistia dada por uma ditadura tem validade no sentido de permitir a restituição dos direitos dos quais essa ditadura privou a suas vítimas. Nada, além disso. É uma renuncia do estado criminoso a insistir em seus crimes. Uma espécie de aposentadoria voluntária.
Depois da reivindicação das vítimas, a 6683 deveria ter sido declarada inexistente em todos seus outros aspectos, como se fez na Argentina em 1984, com a auto-anistia que os militares se deram de presente em 1983. Não digo que Argentina tivesse mais cultura em DH, nem que suas elites fossam mais democráticas; todo o contrário. Mas os militares tinham exterminado pessoas de 32 países, e o conflito internacional, adicionado ao estado explícito de rebelião dos familiares e amigos de desaparecidos (algo como 5% da população), colocava os fascistas em perigo. (A verdade é que os políticos não queriam derrogar essa lei, mas sabiam que, se não o faziam, deveriam encarar uma guerra civil).
O argumento da impossibilidade de retroagir, várias vezes levantado pelos 7 magistrados vitoriosos, não deveria valer para o caso de crimes de lesa humanidade. Os que duvidam disto deveriam ler o erudito e rigorosíssimo projeto Avalon (vide) da Faculdade de Direito de Yale. Uma leitura demorada mostra com clareza que os dirigentes nazistas não poderiam ter sido condenados com as leis da época. Nem as duas Convenções de A Haia sobre crimes de guerra, nem o tratado Briand-Kellog, nem o direito consuetudinário, pensado para guerras mais convencionais, eram aplicáveis ao conflito promovido pelo Reich.
Uma pessoa não pode ser condenada por não pagar um imposto que será criado no próximo ano, mas ninguém pode aduzir que não sabe que esquartejar uma pessoa é uma agressão ao direito natural, mesmo que o país não tenha uma lei específica sobre esquartejamento.
Todavia, a afirmação mais agressivamente cínica (e, ao mesmo tempo ingênua, porque qualquer observador que não tenha a mesma cumplicidade, a achará absurda) é a que diz que a lei 6683 é ampla e general.
As vítimas de persecução, as pessoas que se rebelaram contra a opressão das casernas e seus aliados nacionais e estrangeiros, apenas recebem anistia por “crime” de opinião. No §2º se recusa a anistia aos autores de assaltos, mesmo que não tenham produzido feridos. Na prática, o único que a lei “perdoa” é ter escrito contra a ditadura, ou participado numa passeata, “crimes” que antes da lei podiam ser seriamente punidos.
Nesse sentido, a democracia melhorou um pouco a situação, apesar de que alguns intelectuais como Emir Sader e Fernando Moraes já foram condenados por juízes por dizer que um fascista era um fascista e que um genocida era um genocida. Aliás, os que apanharam nas passeatas de Brasília talvez não sintam nem esse mesmo mínimo benefício da anistia.. Tampouco os petroleiros esmagados durante o governo FHC.
A peculiaridade brasileira de ter uma ditadura cívico-militar totalmente enraizada nas instituições teoricamente democráticas é um sintoma do caráter também peculiar da realidade social e política do país. O Brasil nunca deixou de ser factualmente escravista, mesmo que tenha derrogado a escravidão no final do império. O voto popular sempre foi pouco mais de que um simbolismo: até a EC 25/1985, um setor tão amplo como o dos analfabetos não podia votar. No fundo, o Brasil foi (e ainda é parcialmente) uma sociedade de senhores que disputam pelo poder numa forma análoga ao Portugal do século 18 ou 19. Esses senhores podiam tanto impor uma ditadura como dar de presente ao povo uma democracia. Em particular, para facilitar essa democracia, dava-se, de vez em quando, uma anistia.
Não pode negar-se, que esta última anistia foi algo mais avançada que as anteriores. Aquelas foram “bilaterais” porque eram corolário das brigas entre facões de coronéis. Acabada a briga, o coronel vencedor perdoava o vencido, porque este era seu igual, e o dia de amanhã ele poderia ser o triunfador. Em 1979, a anistia foi um ato pelo qual a ditadura se livrava de uma preocupação. Os militares e seus cúmplices poderiam ter dito ao povo: “Acabou esta forma de governo; vocês podem votar agora, e isso se chamará doravante democracia”. Mas, sem uma anistia, as pessoas perseguidas poderiam ser encorajadas de novo a tomar as armas.
Esta ficção de democracia está evidenciada por vários sintomas. O mais evidente é o número esmagador de “preceitos” jurídicos que estão simplesmente como enfeite. A constituição afirma que o país se baseia na prevalência dos DH, quando milhares de pessoas são torturadas e assassinadas nas delegacias, nos latifúndios, e até nos poucos momentos em que os militares colaboram com a polícia e saem na rua. Quando algum desses fatos se apura, como no massacre de Carajás e de Carandiru, os autores são inocentados.
Também se afirma o respeito à autodeterminação dos povos, enquanto se aplica chantagem a países que, como o Equador e a Bolívia, se defendem da depredação das empresas brasileiras, privadas ou não. Brasil se projeta como líder pacifista e integra (com a Argentina e outros países proto-imperialistas) missões semigenocidas como a MINUSTAH.
Mais ainda, o estado se gaba de ser laico, mas as pessoas devem regrar sua vida privada, planificar sua família e escolher suas opções sexuais de acordo com a sabedoria confessional. A farsa desconhece o pudor: no paraíso da “democracia racial”, os racistas têm tanto poder que tentam obstruir algo tão consensual como as ações afirmativas, que até os Estados Unidos e a Índia têm aceitado.
Mas não devemos ser injustos com o Supremo. Se a democracia é formal, a igualdade racial é algo ainda discutido, a liberdade sexual é uma utopia, e os direitos humanos são metáforas, por que a anistia deveria ser séria?
*Carlos Alberto Lungarzo é professor e escritor, autor do livro "Os Cenários Invisíveis do Caso Battisti". Para fazer o download de um resumo do livro clique aqui. Ex-exilado político, residente atualmente em São Paulo, é membro da Anistia Internacional (registro: 2152711) e colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?".
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