Homossexuais podem ser seus filhos, irmãos, tios ou pais, meninos. Homossexuais podem ser até vocês, que punem com fúria a diferença que não aceitam em sua própria pessoa. Homossexuais não são de Marte nem de Vênus, boys. Homossexuais são da Terra, feras.
Por Urariano Mota (*)
As recentes e documentadas agressões a homossexuais em São Paulo me obrigam a refletir, ainda que breve e superficial, sobre o tema. Mais de uma vez, homossexuais, travestis, têm cruzado o meu caminho no trabalho de repórter, de escritor ou como amigo.
Lembro de uma entrevista que fiz no V Encontro de Travestis e Transexuais do Nordeste, em 2008. À minha pergunta de se, num mundo ideal, Flávia Desirée seria travesti, ela assim me respondeu:
- Não. Eu mesma já disse à minha mãe: “quando um dia eu morrer, eu não quero reencarnar no corpo de uma travesti mais não. Porque eu não aguento mais”.
Em outra oportunidade, um funcionário do Ministério da Cultura me contou, numa mesa de bar, a história de Dona Maria, uma senhora prostituta que, na altura dos 84 anos, era cuidada por um casal de gays. E sobre o seu relato, assim escrevi:
“Dona Maria é cuidada, penteada, lavada e medicada hoje por um casal de homens. José e Jeová, a quem chamaremos assim, em respeito à liturgia do nome da única mulher a quem se devotam, têm os ofícios de advogado e de enfermeiro. Jeová cuida dos assuntos mais altos, dos papéis, documentos e males gerais da vida exterior, pública, de Dona Maria. José, cuida de sua vida mais privada, pois lhe dá remédios, arruma, lava e espana os móveis, e tem uma paciência infinda em tratar da erisipela, que hoje teima em marcar a mulher, a ‘ex-prostituta’, como corre na boca das mais virtuosas famílias do Edifício Califórnia...
O funcionário conta a história até o ponto em que alguém na mesa, de forma elogiosa, afirma que somente um gay poderia despir, dar banho em uma mulher. E com um tom cínico, o elogiador completa:
- Só um gay poderia dizer pra ela, ‘abra as pernas’, sem nada sentir.
O morador do Califórnia, que conta o caso, a isso não responde. Ele olha de lado, como se procurasse algo mais concreto para além da mesa, em outro lugar, em outra terra, que expressasse um sentimento. Algo como, por que dividir assim a humanidade? Por que não ver nesse carinho a expressão de uma esperança? Por que não ver nisto algo tão simples quanto um afeto, afeto sem adjetivo, afeto, afeto, simplesmente? As pessoas na mesa riem diante do ‘abra as pernas’, mas o contador da história, não”.
Em outro dia, em uma entrevista com a escritora espanhola Rosa Regàs, ela me surpreendeu neste passo, quando lhe perguntei :
“- O que Proust escreveu sobre a homossexualidade, pra você, não foi uma revelação, uma descoberta?
- Não, não foi uma revelação nem uma anormalidade. Durante minha infância, à época do ditador Franco, quando reinava na Espanha a moral da Igreja Católica, minha mãe viveu com uma mulher uma bela história de amor. Isso durou cinquenta anos, até que ambas morreram, com meses de diferença, em 1999”.
E Rosa Regàs me surpreendeu de tal modo, que achei fosse erro de minha filha, que sabe espanhol e me ajudava na tradução. Ao que ela me respondeu: “Pai, se for erro, é do gravador. Escute”. Mas eu escutava e não entendia, até o momento em que a escritora me confirmou por email o que dissera.
E no entanto, eu não precisava ir tão longe. Todos os meus amigos no Recife lembram do nosso amigo mais brilhante, sobre quem soubemos da homossexualidade muitos anos depois da sua morte. Somente hoje sabemos: ele atravessou, naqueles anos difíceis da ditadura, além do terror que atravessamos, também a angústia de não nos revelar de quem gostava, mesmo nas maiores bebedeiras. É que esse grande companheiro possuía vergonha do próprio ser, porque todos nós teríamos tido vergonha dele também, se soubéssemos.
Na esquerda recifense da época, ser homossexual era algo tão grave quanto entregar um companheiro à repressão. Como era difícil, para a nossa “dialética” nos anos 70, assimilar, por exemplo, que Pasolini era comunista e gay. Isso era tão absurdo, que um dos nossos, mais exaltado, protestava: “Se ele é comunista, não é gay. Mas se for mesmo gay, então Pasolini é... uma parcela avançada”. Não sabíamos que homossexuais, por essa condição, não poderiam ser de direita ou de esquerda, assim como ninguém é comunista ou fascista por ter nascido homem ou mulher, ou por se chamar Antonio ou Elenice.
Essas lembranças nos vêm quando vemos jovens na televisão, tidos como normais, agredindo outros jovens tidos como anormais, apenas porque as vítimas se mostravam pouco viris. O quanto ainda temos por crescer, como homens e gente. Se houvesse um castigo que redimisse tal violência, creio que os agressores deveriam ler até o fim dos seus dias, como uma tarefa de casa, até que a evidência lhes entrasse no cérebro:
Homossexuais podem ser seus filhos, irmãos, tios ou pais, meninos. Homossexuais podem ser até vocês, que punem com fúria a diferença que não aceitam em sua própria pessoa. Homossexuais não são de Marte nem de Vênus, boys. Homossexuais são da Terra, feras.
*Urariano Mota é jornalista, professor de português e escritor. Autor do livro “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do Cabo Anselmo, executada pela equipe de Fleury com o auxílio de Anselmo. Urariano é pernambucano, nascido em Água Fria e residente em Recife. É colunista do site “Direto da redação” e colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”
=> Artigo publicado originalmente no site "Direto da Redação"
Lembro de uma entrevista que fiz no V Encontro de Travestis e Transexuais do Nordeste, em 2008. À minha pergunta de se, num mundo ideal, Flávia Desirée seria travesti, ela assim me respondeu:
- Não. Eu mesma já disse à minha mãe: “quando um dia eu morrer, eu não quero reencarnar no corpo de uma travesti mais não. Porque eu não aguento mais”.
Em outra oportunidade, um funcionário do Ministério da Cultura me contou, numa mesa de bar, a história de Dona Maria, uma senhora prostituta que, na altura dos 84 anos, era cuidada por um casal de gays. E sobre o seu relato, assim escrevi:
“Dona Maria é cuidada, penteada, lavada e medicada hoje por um casal de homens. José e Jeová, a quem chamaremos assim, em respeito à liturgia do nome da única mulher a quem se devotam, têm os ofícios de advogado e de enfermeiro. Jeová cuida dos assuntos mais altos, dos papéis, documentos e males gerais da vida exterior, pública, de Dona Maria. José, cuida de sua vida mais privada, pois lhe dá remédios, arruma, lava e espana os móveis, e tem uma paciência infinda em tratar da erisipela, que hoje teima em marcar a mulher, a ‘ex-prostituta’, como corre na boca das mais virtuosas famílias do Edifício Califórnia...
O funcionário conta a história até o ponto em que alguém na mesa, de forma elogiosa, afirma que somente um gay poderia despir, dar banho em uma mulher. E com um tom cínico, o elogiador completa:
- Só um gay poderia dizer pra ela, ‘abra as pernas’, sem nada sentir.
O morador do Califórnia, que conta o caso, a isso não responde. Ele olha de lado, como se procurasse algo mais concreto para além da mesa, em outro lugar, em outra terra, que expressasse um sentimento. Algo como, por que dividir assim a humanidade? Por que não ver nesse carinho a expressão de uma esperança? Por que não ver nisto algo tão simples quanto um afeto, afeto sem adjetivo, afeto, afeto, simplesmente? As pessoas na mesa riem diante do ‘abra as pernas’, mas o contador da história, não”.
Em outro dia, em uma entrevista com a escritora espanhola Rosa Regàs, ela me surpreendeu neste passo, quando lhe perguntei :
“- O que Proust escreveu sobre a homossexualidade, pra você, não foi uma revelação, uma descoberta?
- Não, não foi uma revelação nem uma anormalidade. Durante minha infância, à época do ditador Franco, quando reinava na Espanha a moral da Igreja Católica, minha mãe viveu com uma mulher uma bela história de amor. Isso durou cinquenta anos, até que ambas morreram, com meses de diferença, em 1999”.
E Rosa Regàs me surpreendeu de tal modo, que achei fosse erro de minha filha, que sabe espanhol e me ajudava na tradução. Ao que ela me respondeu: “Pai, se for erro, é do gravador. Escute”. Mas eu escutava e não entendia, até o momento em que a escritora me confirmou por email o que dissera.
E no entanto, eu não precisava ir tão longe. Todos os meus amigos no Recife lembram do nosso amigo mais brilhante, sobre quem soubemos da homossexualidade muitos anos depois da sua morte. Somente hoje sabemos: ele atravessou, naqueles anos difíceis da ditadura, além do terror que atravessamos, também a angústia de não nos revelar de quem gostava, mesmo nas maiores bebedeiras. É que esse grande companheiro possuía vergonha do próprio ser, porque todos nós teríamos tido vergonha dele também, se soubéssemos.
Na esquerda recifense da época, ser homossexual era algo tão grave quanto entregar um companheiro à repressão. Como era difícil, para a nossa “dialética” nos anos 70, assimilar, por exemplo, que Pasolini era comunista e gay. Isso era tão absurdo, que um dos nossos, mais exaltado, protestava: “Se ele é comunista, não é gay. Mas se for mesmo gay, então Pasolini é... uma parcela avançada”. Não sabíamos que homossexuais, por essa condição, não poderiam ser de direita ou de esquerda, assim como ninguém é comunista ou fascista por ter nascido homem ou mulher, ou por se chamar Antonio ou Elenice.
Essas lembranças nos vêm quando vemos jovens na televisão, tidos como normais, agredindo outros jovens tidos como anormais, apenas porque as vítimas se mostravam pouco viris. O quanto ainda temos por crescer, como homens e gente. Se houvesse um castigo que redimisse tal violência, creio que os agressores deveriam ler até o fim dos seus dias, como uma tarefa de casa, até que a evidência lhes entrasse no cérebro:
Homossexuais podem ser seus filhos, irmãos, tios ou pais, meninos. Homossexuais podem ser até vocês, que punem com fúria a diferença que não aceitam em sua própria pessoa. Homossexuais não são de Marte nem de Vênus, boys. Homossexuais são da Terra, feras.
*Urariano Mota é jornalista, professor de português e escritor. Autor do livro “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do Cabo Anselmo, executada pela equipe de Fleury com o auxílio de Anselmo. Urariano é pernambucano, nascido em Água Fria e residente em Recife. É colunista do site “Direto da redação” e colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”
=> Artigo publicado originalmente no site "Direto da Redação"
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