A ilicitude virou a regra geral; não só o coração foi petrificado, mas também o nosso pensamento; e também não só maceramos o corpo para a obtenção desses luxos e prazeres, como também reduzimos os nossos sonhos somente a isso; eis a desgraça maior.
Ao acompanhar esse “BBB” da caçada aos traficantes dos morros e favelas, que são a parte do varejo no grande mundo da venda de drogas, e esperarmos de forma esperançosa começar a caçada aos traficantes do asfalto e dos condomínios de luxo, que são a parte do atacado (será que veremos isso um dia?), fica uma inevitável pergunta: será que alguém, que não tenha o seu nível de cinismo extremamente elevado, ainda acredita que estamos vivendo numa era que se intitula de pós-moderna? O espetáculo transmitido ao vivo por praticamente todos os grandes canais de televisão que reprisam ad infinitum as cenas mais violentas – ou seria mais apropriado dizer emocionantes? --, parece não deixar dúvidas de que sequer saímos da Pré-história.
É claro que nos dias de hoje nós temos algumas vantagens sobre os nossos queridos ancestrais das cavernas. Por exemplo, as cenas de selvageria que ocorriam na Pré-história terminavam ali mesmo, pois não havia esses recursos tecnológicos para que pudéssemos rever a mesma cena milhares de vezes. Você poderia assistir outras cenas, mas jamais teria o “prazer” e o sadismo de ficar por horas e horas assistindo a mesma coisa. Outra vantagem que toda essa tecnologia nos proporciona é que nos intervalos que a mídia nos empurra entre uma caçada e outra, nós podemos escolher o melhor perfume para o nosso vaso sanitário, o iogurte mais vitaminado e saboroso para o nosso filho, a melhor margarina para o seu delicioso café da manhã com a sua família e, obviamente, aqueles produtos que têm mais a ver com a programação oferecida, como o melhor alarme para o seu carro, o melhor serviço de rastreamento que desliga o seu carro em caso de roubo e também o melhor seguro de vida para você e sua família, pois, vai que... Né? É melhor ter.
Sem dúvida que da Pré-história até os dias de hoje nós avançamos em muitas coisas, mas basta um olhar um pouco atento para descobrirmos que ainda não passamos de meros animais, pois nos matamos e nos violentamos sob a pressão de conseguirmos suprir as nossas mais básicas necessidades, como alimento e moradia, apenas para citar esses dois exemplos. Se com todo o avanço tecnológico e com todo o acúmulo de conhecimento efetuado por milhares de anos, nós ainda assistimos e protagonizamos cenas como estas, não resta dúvida de que estamos diante de um modelo completamente falido de sociedade. Um modelo que empurra a maioria das pessoas para uma luta pela sua sobrevivência onde o outro é visto apenas como um adversário, um rival a ser derrotado e eliminado. Que coloca nos ombros de cada um, isoladamente, a responsabilidade e o peso da sua própria condição de vida. Reafirmando e reproduzindo o discurso falacioso de que cada um tem aquilo que merece, pois vivemos numa sociedade da meritocracia. Esperar a paz onde se planta a guerra, a solidariedade onde se planta o individualismo, a humildade onde se planta a soberba e a frugalidade onde se planta o acúmulo de riqueza como finalidade principal da vida é, para dizer o mínimo, o mais cínico, hipócrita e perverso tipo de sociedade que poderíamos ter construído.
Num romance intitulado Eugênia Grandet, de Honoré de Balzac, há uma passagem em que o autor descreve de forma magistral quais são os valores, a moral e a ética que está se formando e se afirmando no início do século XIX. Essa passagem, quando lida por nós nos dias de hoje, nos mostra e nos revela o quão aguda e apurada era a visão de mundo que Balzac vislumbrava não só para a sua própria geração como também para as gerações futuras que já estavam sob a égide do sistema capitalista. Diz o trecho:
“Os avarentos não crêem numa vida futura, o presente é tudo para eles. Essa reflexão lança uma luz horrível sobre a época atual, onde, mais que em qualquer outro tempo, o dinheiro domina as leis, a política e os costumes. Instituições, livros, homens e doutrinas, tudo conspira para minar a crença numa vida futura, sobre a qual se apóia o edifício social há 1800 anos. Hoje em dia, o esquife é uma transição pouco temida. O futuro, que nos esperava para elem do réquiem, transportou-se para o presente. Chegar pelo lícito e pelo ilícito ao paraíso terrestre do luxo e dos prazeres vãos, petrificar o coração e macerar o corpo em busca de posses passageiras, como outrora se sofria o martírio da vida em busca de bens eternos, eis a idéia geral! Idéia aliás inscrita por toda parte, até nas leis, que perguntam ao legislador: ‘Que pagas?’, ao invés de perguntar: ‘Que pensas?’ Quando essa doutrina tiver passado da burguesia ao povo, que será do país?”
Não por acaso, K. Marx dizia que aprendia mais sobre a sociedade burguesa lendo Balzac do que lendo qualquer outro clássico sobre economia política. E o próprio Balzac costumava dizer que considerava seus livros como um par de óculos, pois serviam para fazer com que o seu leitor enxergasse melhor a sociedade em que vive. Mas se mesmo assim o leitor não conseguisse essa visão mais apurada lendo seus livros, o próprio autor recomendava: “Troque de óculos.” Quanto à pergunta que Balzac nos faz na última frase da citação acima, sobre o que será do país quando a doutrina burguesa alcançar o povo, devemos responder que a doutrina burguesa ultrapassou as fronteiras dos países e alcançou o povo no mundo inteiro. E para sabermos as conseqüências disso basta um breve olhar ao nosso redor para termos a resposta. Nada está mais introjetado na mentalidade da sociedade hodierna do que a doutrina à qual se refere Balzac. O que talvez esteja diferente é que nos dias atuais essa doutrina parece estar elevada à décima potência, pois a ilicitude virou a regra geral; não só o coração foi petrificado, mas também o nosso pensamento; e também não só maceramos o corpo para a obtenção desses luxos e prazeres, como também reduzimos os nossos sonhos somente a isso; eis a desgraça maior.
*Renato Prata Biar é historiador, pós-graduado em filosofia. Mora no Rio de Janeiro e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.
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