Por José Ribamar Bessa Freire (*)
O candidato a presidente da República, José Serra, pode ser culpado pela derrota da seleção brasileira? Há controvérsias. De qualquer forma, revelo aqui os bastidores do dia em que Serra deu uma de Dunga e levou o nosso futebol a um clamoroso fracasso. Mas não quero influenciar ninguém. Conto o caso como o caso foi. Que os leitores e leitoras tirem suas próprias conclusões dessa história edificante, comparando-a com o recente discurso feito por Serra na Confederação Nacional da Agricultura.
Comecemos pelo começo, desenhando o cenário e apresentando os personagens. Foi assim... Tudo começou há mais de quarenta anos, com o golpe militar que levou ao exílio milhares de brasileiros. O Chile acolheu um sem-número deles que, evitando a prisão e a tortura, fizeram o caminho de Santiago em duas ondas de exilados: uma em 1964, a outra em 1969.
Da primeira faziam parte ministros, deputados, jornalistas, professores como Fernando Henrique Cardoso, Almino Afonso, Plínio Arruda Sampaio, Paulo Freire, e tantos outros, entre os quais José Serra, ex-presidente da UNE, que se qualificou no exílio cursando mestrado em Economia na Escolatina da Universidade do Chile. Com boa formação acadêmica, ocuparam cargos bem remunerados no Governo chileno e em organismos internacionais, da OEA e da ONU, sediados naquele país.
A segunda onda era composta, em sua maioria, por peixe pequeno: militantes, estudantes, profissionais jovens em começo de carreira, gente que atravessou a fronteira do Uruguai, a pé, sem dinheiro, sem passaporte e de lá foi de ônibus ou avião para o Chile. Entre eles estava o ator Euclides Coelho de Souza, o repórter Tarcisio Lage e esse que digita essas mal traçadas linhas. Quando em outubro de 1969, com a diferença de alguns dias, chegamos à capital chilena, nenhum de nós três tinha onde cair morto. Quem matou nossa fome foi a Caixinha. Bendita Caixinha!
A Caixinha
Caixinha foi o nome que os exilados deram a uma instituição criada no Chile por brasileiros, destinada a ajudar os compatriotas enquanto não encontravam trabalho. Aqueles que tinham altos cargos em organismos internacionais, com salário em dólares, contribuíam mensalmente e pagavam, assim, a hospedagem dos desempregados. Desta forma, tínhamos casa e comida. Roupa lavada? Cada um cuidava pessoalmente da sua.
A primeira pensão que nos hospedou, de propriedade da dona Adriana, ficava na Calle Michimalongo, onde a comida servida pela Juanita era muito boa: sopa de aspargos, alcachofra, porotos granados, empanadas, caudillo de congrio. Mas a repressão no Brasil se acirrou e com ela cresceu a enxurrada de exilados que chegavam aos potes, desequilibrando as finanças da Caixinha. Fomos, então, transferidos para uma pensão muito mais barata na Calle Grajales. Lá, um dia sim e o outro também, nos serviam rim cortado em cubinhos com cheiro de carne mijada.
Foi lá, na pensão da Grajales, que a ‘seleção brasileira’, formada pelo pessoal da Caixinha, se concentrou antes da partida decisiva contra a ‘seleção chilena’, no campeonato de pelada que rolava todos os sábados num campinho de um colégio jesuíta. O nosso half direito Euclides, o Dadá, era uma peça ofensiva fundamental. Rápido e habilidoso, tinha forte arrancada, bom drible, realizava cruzamentos mortais e ainda por cima recuava para defender.
Acontece que Dadá não podia jogar por uma razão prosaica: não tinha calção, nem dinheiro para comprá-lo. Procuramos a Caixinha que, como todo banco, era controlado por um mineiro: o escritor Edmur Fonseca. Embora generoso, ele alegou inexistência de fundos para aquisição de supérfluos. Acionamos outros mineiros: o advogado Antônio Romanelli e os jornalistas Guy de Almeida e José Maria Rabelo. Tudo em vão.
Foi aí que Teodoro Buarque de Holanda, primo do Chico, doou à ‘seleção brasileira’ um jeans velho, mas de marca, comprado em boutique. A Adair Therezinha Chevonika, mulher do Dadá, pegou uma tesoura, cortou as pernas e transformou o jeans num bermudão. Quando o Dadá entrou em campo, vocês podem não acreditar, mas José Serra, que dava uma de técnico improvisado, gritou:
- Quem estraga uma calça cara só para jogar futebol é porque tem dinheiro, deve ser muito rico, não precisa da Caixinha. Você não deve mais receber ajuda.
Índios en la costa
Meninos, eu vi, e ouvi. Se fosse nos Estados Unidos, o Dadá processava o Serra por danos morais e ganhava uma grana preta. Mas naquelas condições, no Chile, ele ficou arrasado, sem condições psicológicas. A ‘seleção brasileira’, com seu half direito moralmente contundido, perdeu de 4 x0. Dadá fez até gol contra. Serra organizou essa derrota do Brasil? Só Deus sabe.
No dia seguinte - meninos, essa eu não vi, mas circulou entre os exilados - Tarcisio Lage chamou Serra de “reacionário” nos corredores da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO), onde ambos trabalhavam. Serra reagiu:
- Você é um maoísta sectário e fanático, Tarcísio. Você faz parte da esquerda pueril!
- Vai-te pra pqp – respondeu Tarcisio, que é bom de rima. Os dois se engalfinharam, verbalmente, e quem desapartou a briga foi Fernando Henrique Cardoso, ajudado pelo professor Deodato Rivera, que sonhava em fazer o maior fichário de ciências sociais do mundo. Meu amigo Tarcísio, que hoje vive na Holanda e mantém um blog (www.anarco.net) pode confirmar a história, que talvez nos ajude a entender a contradição do Serra.
Um lado do Serra é generoso; o outro é pão-duro e sovina. Na quinta-feira, em debate na Confederação Nacional de Agricultura, o lado mesquinho emergiu. Para puxar o saco da senadora Kátia Motoserra Abreu, Serra se manifestou contra a distribuição de cesta básica para o MST: “Não quero que o governo gaste dinheiro com isso”. A cesta do MST é o bermudão do Dadá.
Serra, Dilma, Marina e Plínio – qualquer um deles tem competência e biografia para exercer a presidência da República. O diabo é que os dois mais cotados nas pesquisas não podem renunciar ou morrer no cargo. Imaginem o Brasil governado pelo mordomo de vampiro, o Michel Temer, o rei do fisiologismo, ou por essa caricatura, esse paspalhão sub-collorido – o Índio da Costa, envolvido com desvio da merenda escolar no Rio de Janeiro!
Dizem que nessa sexta-feira, depois do primeiro tempo Brasil x Holanda, comunicaram ao Felipe Mello que Índio da Costa foi escolhido para ser o vice de Serra. O jogador ficou tão baratinado como o Dadá. Deu no que deu. Essas alianças vergonhosas com o DEM e a parte podre do PMDB representam grande risco para o país. Como dizem os espanhóis para advertir uma situação de perigo: Atenção, Brasil, hay moros en la costa.
*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blog “Taqui pra ti” e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”
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