Deu zebra no mundial
Por Rui Martins (*)
Berna (Suiça) - E aconteceu o que todos temiam e alguns, mais entendidos, tinham previsto. De alegria do povo, virou tristeza, felizmente logo depois partilhada, porque para consolo da torcida brasileira, tomaram também o avião de volta os argentinos com Maradona e equipe.
Torcedor de quatro em quatro anos, me fica deste Mundial a impressão de que futebol tem sua dose de técnica, porém não deixa de ser um jogo, com pano verde de grama e os golpes de chance ou de azar nas cobranças de pênaltis.
Muito se tem falado da solidão do goleiro na hora do pênalti, porém pouco dos traumas e sequelas psicológicas dos jogadores depois de perderem seu pênalti. Como os infelizes chutadores de Gana e do Paraguai, incapazes de explicar aos seus compatriotas a sua falha, o seu erro ou sua falta de sorte.
Futebol é um jogo e aí sua força mobilizadora, seu sucesso mundial e a paixão geradora de tanta adrenalina. Quando nossa seleção está ganhando queremos que o tempo passe ligeiro, quando está perdendo esperamos a repetição do milagre de Josué, capaz de parar o tempo, contado no livro bíblico das mil e uma maravilhas.
Sendo jogo, tudo pode acontecer, como se ganhar na loteca e a Suíça derrotar a Espanha. Cadê a lógica ? A bola bate na trave, passa por cima, raspa ao lado, mas não vale. Só vale bola na rede e tem dias em que ninguém consegue enfiar a danada da bola na rede.
Potência do chute do pé, resistência do ar provocando ligeiros mas fatais desvios do curso da bola, provavelmente possíveis de se reconstituir em leis de física, numa fórmula complicada, porém impossível de se prever na corrida do jogador, sob a pressão do adversário. Na cobrança de uma falta não há os marcadores matemáticos calculados pelos soldados de artilharia ao disparar seu tiro.
E esse jogo, que em certos momentos não difere muito da roleta, pode provocar crises dentro do governo, reforçar uma ditadura, criar um clima de alegria coletiva, ajudar na coesão nacional e unir etnias sob a mesma bandeira. Como todo jogo, pode viciar, obcecar, desviar os torcedores de outros interesses dominados pela sequência de alegrias intensas e derrotas imensas.
Toda vez que vou ao Brasil me impressiono com o excesso e importância do futebol, dos jogos, das transmissões, dos comentários, com os torcedores fanáticos, os debates de cronistas incapazes de correr 100 metros mas especialistas na arte de explicar porquê deu 17 preto e não 13 vermelho. Quantas imagens, quanta falação, quantas transmissões e ilusões transitórias como sedativos em populações que se empolgam e se esquecem de seus problemas cotidianos, envolvidas em ilusões passageiras e vitórias efêmeras.
A dose é visivelmente excessiva, próxima da dopagem, muito além da média européia, valendo mesmo como compensação para frustrações diárias. Uma extraordinária energia dissipada num pretenso esporte, em que os espectadores só vêem e ouvem, sem poder tomar qualquer iniciativa, obrigados a aceitar a derrota se não for obtida a esperada vitória. Exercício frustrante, escola ideal para se chegar ao conformismo e à aceitação do statu quo, da inoperância e do desistímulo à ação transformadora da sociedade.
A derrota da seleção brasileira nesse jogo do futebol poderia ser a chance para a população iniciar uma desintoxicação e se curar dessa dependência e dopagem futebolística, que faz tantos ficarem milionários na venda de ilusões virtuais competitivas.
*Rui Martins é jornalista. Foi correspondente do Estadão e da CBN, após exílio na França. É autor do livro “O Dinheiro Sujo da Corrupção”, criador dos "Brasileirinhos Apátridas" e da proposta de um Estado dos Emigrantes. É colunista do site "Direto da Redação" e vive em Berna, na Suíça, de onde colabora com os jornais portugueses Público e Expresso, e com o blog "Quem tem medo do Lula?"
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