Por José Ribamar Bessa Freire (*)
- Co-mu-nis-ta! Esse menino fala como um comunista – vociferou tio Esmeraldo, me censurando na varanda da casa da vovó Marelisa, na Rua Monsenhor Coutinho, 380, em Manaus. Vovó, alarmada, empalideceu. Naquela época, 1960, era um pecado mortal, um sacrilégio, ser ou parecer comunista, ainda mais numa família católica, apostólica e romana como a nossa, cheia de padres e freiras.
Foi um comunista, o Luiz Barbeiro, que convenceu o Leno, da Vila Rezende, a esconder no bolso uma hóstia consagrada, de onde jorrou sangue – dizem, eu não vi – manchando sua calça, antes de sair gotejando sobre os trilhos de bonde da Rua Alexandre Amorim. A prima do Leno, Rosilene Cabral, ex-professora do SESC, que está aí mesmo e não me deixa mentir, foi quem lavou a roupa e jura que a mancha só saiu com água benta.
Afinal, como é que eu, um menino de 12 anos, temente a Deus, podia concordar com os comunistas, cuja doutrina ignorava, e que ainda por cima tinham fama de profanadores de hóstia? Tudo começou no dia em que presenciei um parente extremamente pobre, Raimundo Cyrino, contar pra vovó, aos prantos, como os jagunços destruíram sua roça e o expulsaram de um terreno lá no Tarumã, onde vivia com mulher e filhos. Ele não tinha onde cair morto. Foi a primeira vez que vi um homem adulto chorar. E seu choro era tão sentido, tão doído, que hoje, cinquenta anos depois, ainda ecoa em minha lembrança.
Tio Dantas me explicou, então, que toda aquela imensidão de terra vazia e improdutiva tinha dono, e não podia ser usada nem mesmo por quem estivesse morrendo de fome. Revoltado, fiz um discurso ingênuo que, segundo tio Esmeraldo, era uma defesa da reforma agrária – “bandeira dos comunistas”, que ele combatia como candidato a vereador pela UDN (vixe-vixe!). Por via das dúvidas, vovó me aconselhou que rezasse mil vezes a jaculatória ‘Jesus, Maria, José, minh´alma vossa é’. Obedeci. Mas foi aí que minh’alma apostrofada, assim entregue, compreendeu que os comunistas lutavam por justiça social.
Fantasma do comunismo
O que aconteceu com o fantasma que rondava a Europa em meados do século XIX, anunciado pelo Manifesto Comunista de 1848? Faz meio século, ele ainda circulava pelo Brasil defendendo os oprimidos. E agora? Eis o que eu queria dizer: hoje, se a referência fosse o deputado Aldo Rebelo, filiado ao glorioso Partido Comunista do Brasil (PCdoB-SP), a vovó me dispensaria das jaculatórias, e tio Esmeraldo aplaudiria, imitando os ruralistas que, na última terça-feira, em sessão tumultuada numa comissão da Câmara dos Deputados, aprovaram o relatório que modifica o Código Florestal.
Eles aplaudiram o projeto do Aldo, porque ele anistia todos aqueles que, entre 1994 e 2008, cometeram crimes ambientais e desmataram mais do que o permitido por lei. A soma das multas aplicadas nesse período ultrapassa R$ 10 bilhões – segundo cálculos oficiais do IBAMA – que deixam de ser recolhidos aos cofres públicos, beneficiando grandes proprietários e exportadores. Os anistiados sequer são obrigados a replantar o que foi destruído. Aqueles que respeitaram a lei estão se sentido uns babacas.
O projeto do Aldo reduz ainda a faixa obrigatória de preservação das matas que ocupam as margens dos rios, incentivando o desmatamento, recebendo por isso críticas do secretário do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, Luiz Pinguelli Rosa. Para Aldo, a floresta é um obstáculo ao progresso e uma inimiga da civilização. Ele ignora o rico patrimônio florestal brasileiro e não reconhece “o inegável papel que a saúde florestal exerce para a saúde climática e para o bem-estar das populações”.
Por isso, foi duramente criticado pela comunidade científica, pelos pequenos agricultores e pelos povos da floresta. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) diz que o parecer não tem qualquer fundamentação científica. E a Confederação Nacional dos Trabalhos na Agricultura (Contag) avalia que ele favorece os grandes desmatadores. Mas Aldo foi ovacionado pela presidente da Confederação Nacional da Agricultura, senadora Kátia Abreu (DEM-TO – vixe, vixe) que, em declaração estarrecedora ao Jornal Nacional, disse como se sentia:
– “Um alívio! Essa suspensão é uma respirada. Nada hoje prejudica mais o agronegócio, a agropecuária, do que essa insegurança jurídica, essa questão das multas, essa truculência que tem sido praticada dia a dia no campo”. O que esse discurso diz e o que ele esconde?
Dito e não-dito
O não-dito é fundamental para apreender o significado do que foi dito. O discurso da senadora não diz que toda propriedade de terra no Brasil foi, originalmente, tomada dos índios à força. Que as terras assim usurpadas foram concedidas como sesmarias pela Coroa Portuguesa aos nobres, navegadores, militares e colonos. Que a economia se baseava no latifúndio, na monocultura e na escravidão. Que o sistema de capitania hereditária isentava o donatário de taxas, fazia dele a autoridade máxima dentro daquelas terras, permitindo até que decretasse a pena de morte para escravos e índios.
Esse sistema de violência institucionalizada foi formalmente extinto no final do período colonial, mas continuou operando até os nossos dias na conduta de muitos proprietários. Segundo a Comissão Pastoral da Terra cresce a violência contra camponeses pobres, com a omissão do Poder Judiciário. Foram assassinados 1546 trabalhadores rurais nos últimos 25 anos, mas foram abertos apenas 85 processos judiciais e somente 19 mandantes de crimes foram condenados. Em 2009, o Brasil viu 25 assassinatos, 71 pessoas torturadas, 1884 famílias expulsas e um aumento de 163% de casas destruídas.
Para a senadora, porta-voz dos donatários do século XXI, a violência não é essa. O agronegócio - coitado! – é que passa a ser vítima da violência no campo. As leis que protegem a floresta e, com ela, a saúde do conjunto da população constituem uma “truculência”. As multas que punem os transgressores da lei sufocam o agronegócio, enfim a ordem jurídica causa insegurança entre os proprietários. Para ela, violência no campo é isso. Dessa forma, ela corrompe a linguagem.
Há alguns meses, o filho da senadora, Irajá Silvestre Filho, 27 anos, que é candidato a deputado federal, estacionou o carro em local privativo dos táxis no Terminal Rodoviário de Palmas (TO). Quando foi abordado pelos policiais militares, ele se recusou a entregar seus documentos, questionou a multa e a remoção do veículo e desacatou a autoridade. Seguindo o exemplo materno, ele se sentiu sufocado pela truculência das leis do trânsito.
O signo lingüístico – a gente sabe – é o signo ideológico por excelência porque carrega valores que disputam a representação do mundo e refletem as relações sociais, os conhecimentos, as crenças, as atitudes. O discurso da senadora pretende expropriar os discursos dos movimentos sociais e usurpar os significados das lutas camponesas, tentando transformar uma representação de uma categoria – a do agronegócio – em crença coletiva – do Brasil.
A senadora cumpre seu papel, em defesa de sua categoria. Faz parte do jogo da democracia burguesa. O doloroso, o imperdoável nisso tudo, é ver Aldo Rebelo, um parlamentar eleito pelo voto comunista, colocar seu trabalho, sua energia, seu verbo e sua biografia a serviço dessas forças, na defesa de um modelo de progresso que contraria a história dos movimentos populares. Dessa forma, ele mancha a trajetória histórica do partido e trai as lágrimas e os anseios de tantos Raimundos injustiçados nesse Brasil. Essa mancha, não tem água benta que dê jeito. Que o voto do Curupira se manifeste nas próximas eleições.
P.S – No Amazonas, para deputado estadual, estou fazendo a campanha do candidato 13013. No próximo domingo, o nome do candidato e as razões do apoio.
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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (Uerj), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti
Colabora com a Agência Assaz Atroz e com este "Quem tem medo do Lula?"
Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
Agência Assaz Atroz
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