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sábado, 5 de junho de 2010

Dona Dadá da Jaca


Dona Dadá da Jaca


Por José Ribamar Bessa Freire (*)


No bairro de Aparecida, em Manaus, o apelido é uma instituição. Lá, ninguém tem nome. Só apelido, que é sempre cortante como um bisturi. Perguntem quem é dona Darcicleide, mãe do Thomáz Augusto, ninguém sabe; mas dona Dadá, a mãe do Fon-Fon, todo mundo conhece. Conhecia. Ela morava na Rua Coronel Salgado, na beira de uma enorme cratera, chamada de ‘Covão’, depois aterrada e, hoje, ocupada, às terças-feiras, pela feirinha livre. Sua casa ficava nos fundos do terreno baldio que, no mês de setembro, abrigava o Bingo da Quermesse da Paróquia.


No final dos anos 50, quando os padres redentoristas construíram a igreja, a casa foi demolida. Mas antes disso, durante anos, dona Dadá, que era viúva, manteve no quintal um pequeno pomar doméstico, com várias árvores frutíferas, entre as quais se destacava uma jaqueira, enorme e troncuda, que dava umas senhoras jacas, respeitáveis, de até dez quilos, com bagos carnosos, doces, de cheiro forte e inebriante. Era a famosa jaca-mole-manteiga, anunciada no pregão do seu Messias pelas ruas da cidade.


Quando chegava o fim do ano, a jaqueira ficava coalhada com dezenas de jacas. Dona Dadá aproveitava tudo. Cortava a fruta - e aí a gente sentia o perfume em todos os becos do bairro. Selecionava os bagos, retirando aquela camada grudenta. Com a polpa, preparava um doce tão delicioso, mas tão delicioso que nem militante do PSOL botaria defeito. Do caroço assado, fazia castanha saborosa. Das folhas, remédio caseiro: um xarope expectorante bastante eficaz. Tosse, pelo menos, o Fon-Fon nunca teve.


Por essa razão, dona Dadá ganhou um – digamos assim – sobrenome: Dadá da Jaca. Na Aparecida, apelido é tão importante que tem até sobrenome. Em conseqüência, Fon-Fon herdou o da mãe e ficou conhecido, para sempre, como Fon-Fon da Jaca.


Fon-Fon da Jaca


Dadá? Tudo bem! Fon-Fon? Vá lá que seja! Afinal, ele tinha o lábio ligeiramente leporino. Mas ‘da Jaca’? Sabe-se lá por qual razão a família implicou com esse ‘sobrenome’. A jaqueira dava sombra, dava fruto, dava alimento, dava compota, dava remédio, mas dona Dadá também dava - comentavam as más línguas, infernizando a vida do Fon-Fon. A maledicência não tinha limites. Diziam que Fon-Fon era assim, amarelão empombado, porque seu Osvaldo – o Merisvaldo, caseiro dos padres – comeu muito a jaca da senhora sua mãe e costumava consolar a viúva nas noites chuvosas de Manaus.


Foi justamente num daqueles temporais amazônicos que uma jaca pesadona despencou, na madrugada, fazendo um rombo no telhado de zinco, caindo em cima da cama da Dona Dadá onde – dizem, dizem, eu não sei – Merisvaldo sonhava que comia compota de jaca. Esse foi o pretexto de dona Dadá pra se livrar do apelido que tanto desgosto lhe causava. Mandou o Merisvaldo derrubar a jaqueira, achando que assim resolveria três problemas: o do telhado, o do apelido e o de sua reputação. Com a jaqueira cortada, acreditava que o ‘da Jaca’ seria extirpado de sua identidade e voltaria a ser simplesmente Dadá.


Mas o homem põe e Deus diz: “põe”. Merisvaldo botou. Botou no toco. Levou vários dias para derrubar a jaqueira, que tinha mais de vinte metros. Cortou na base, deixando apenas a parte inferior do tronco, de um metro mais ou menos. Dona Dadá se arrependeu, porque com aquele toco assim exposto, os seus vizinhos passaram a identificá-la como Dadá do Toco do Merisvaldo. A emenda foi pior do que o soneto.


Antes que o apelido se consolidasse e seu filho fosse chamado de Fon-Fon do Toco do Merisvaldo, dona Dadá pediu, por amor de Deus, que arrancassem aquele mondrongo. As raízes estavam tão profundamente enterradas, que o caseiro pediu ajuda do Rodolfinho, o sacristão. Depois de quinze dias, o toco foi extraído, deixando um enorme buraco. A canalha do bairro não duvidou em mudar o codinome pra Dadá do Buraco.


- Tapa o buraco – implorou ela ao Merisvaldo. Com seus dentes de jacaré expostos, ele trouxe carradas de entulho de umas reformas lá na Fábrica de Cerveja XPTO e fechou tudo direitinho. Os vizinhos, então, que nunca aceitaram a derrubada da jaqueira, passaram a chamá-la de Dadá do Buraco Tapado. Ela não podia nem freqüentar a banca de tacacá da dona Alvina, que gritavam seu apelido, deixando saudades dos tempos em que era apenas Dadá da Jaca.


Carequinha querido


Por que me lembrei disso? A memória é caprichosa, tem lá suas armadilhas, permitindo associações inimagináveis. Nesse feriado, quando vi a procissão na TV, a imagem da dona Dadá ficou bubuiando em minha cabeça. Juro que cheguei até sentir o cheiro da jaca. E isso porque na festa de Corpus Christi, durante muitos anos, era ela que colocava velas e flores no altar da igreja de Aparecida, enfeitava o tabernáculo e puxava o hino com sua voz gasguita: “Criaturas todas, a Jesus saudemos / Deus sacramentado / vinde e adore-emos”.


Dai recordei poema de Bertold Brecht. Um prisioneiro socialista com uma faca riscou letras enormes na parede da cela: VIVA LENIN! Guardas viram e mandaram um pintor apagar aquilo. Com um pincel o cara cobriu letra por letra com cal, o que destacou ainda mais as palavras. Aí mandaram um segundo pintor, que cobriu tudo com tinta escura, mas horas depois, quando secou, as letras teimosas apareceram em relevo. Chamaram então um pedreiro que, com uma talhadeira, cavou letra por letra, deixando gravada a inscrição invencível. “Agora, derrubem a parede” – disse o preso socialista.


O poema, hoje, ficaria ainda melhor se Brecht tivesse usado a palavra ‘Liberdade’ no lugar de ‘Lenin’. Mas olha só como a memória faz suas piruetas, permitindo que José Melo entre nessa história como Pilatos no Credo. É que me enviaram pela internet o recorte de um jornal de Humaitá (Am) dizendo que José Melo, ex-secretario do Eduardo Braga (PMDB – vixe, vixe!) estava sendo disputado para ser candidato a vice-governador na chapa de todos os prováveis candidatos. “Ele é o carequinha mais querido do Amazonas” – bajulava o jornal.


Ora, uma consulta ao Diário Oficial da União (p.124, 11/04/2002) mostra que houve desvio dos recursos da merenda escolar e que os recibos apresentados pelo Carequinha, referente à entrega de ovos para as escolas, em 1995, quando ele era secretário de educação, “apresentam fortes indícios de falsificação”. Por isso, José Melo ficou conhecido em todo o Amazonas como José Melo Merenda.


Ele, que na época da ditadura, trabalhou para a AESI e o SNI, agora está querendo derrubar a jaqueira, arrancar o toco, tapar o buraco e, se preciso, derrubar a parede para que esqueçam que ele é o José Melo Merenda. Inutilmente. A gente carrega a memória e a história da gente no próprio corpo, na nossa identidade. Cada tentativa de esconder, revela ainda mais. Eis o que eu queria dizer: José Melo Merenda é, sem dúvida alguma, a Dadá da Jaca da política amazonense.


*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no "Diário do Amazonas" coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa "Pró-Índio".  Mantém o blog "Taqui pra ti" e é colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?"

Um comentário:

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