Página virada? Onde?
Por Laerte Braga (*)
A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) preservando intocáveis os torturadores da ditadura militar que resultou do golpe de estado em 1964 não muda o caráter criminoso dessas figuras, à luz dos direitos fundamentais do homem, e nem transforma “valentes patriotas” como Brilhante Ulstra (coronel e ex-chefe do DOI CODI de São Paulo) em inocentes cumpridores do dever diante de “ameaças internacionais”.
O golpe de 1964 foi um movimento planejado, coordenado e executado a partir dos interesses norte-americanos na América Latina e especialmente no Brasil, país chave dessa parte do mundo. A maioria das forças armadas brasileiras apenas se submeteu (continua submissa) àqueles interesses e executou fielmente o que lhe fora determinado.
Dan Mitrione foi um agente da CIA. Veio ao Brasil com a tarefa de treinar militares e policiais da ditadura para reprimir reações à barbárie que tomou conta do País desde o 1º de abril de 1964. Foi um dos articuladores da Operação Condor, que juntou a repressão em todas as ditaduras latino-americanas, com ênfase no Brasil, Argentina e Uruguai para a eliminação sumária de opositores. Essas ações iam desde a tortura, sequestro, ao assassinato, passando pelo estupro.
A cumplicidade das elites brasileiras com esses crimes hediondos era plena e absoluta. Financiaram a boçalidade da ditadura (que lhe era servil). A chamada OBAN (OPERAÇÃO BANDEIRANTES) comandada pelo famigerado delegado Sérgio Fleury foi montada sob a coordenação de um empresário dinamarquês, com participação de empresas como a Mercedes, Supergasbras e os caminhões do jornal FOLHA DE SÃO PAULO (emprestava os caminhões para a desova de opositores assassinados. O documentários “CIDADÃO BOILESEN” conta essa história de vilania pura.
Os corpos eram entregues às famílias, os que foram, em caixões lacrados, com a expressa proibição de serem abertos e um laudo de “vítima de atropelamento”.
Militares argentinos e uruguaios, chilenos, que sufocaram seus países, como os brasileiros, boa parte deles está na cadeia cumprindo pena por esse tipo de crime. Aqui decidiram que vão ficar impunes. Militares e civis torturadores.
Dan Mitrione, que durante anos foi nome de rua em Belo Horizonte, na covardia e subserviência de um político sem caráter, morreu em em Montevidéu. Há suspeitas que o atual ministro das Comunicações Hélio Costa, sabidamente ligado a USAID (UNITED STATES AGENCY INTERNATIONAL DEVELOPEMENT) tenha sido seu intérprete no período que lecionou “tortura” aos militares brasileiros.
O ministro Eros Grau precisou de três horas para expor seu voto, foi o relator, tentando justificar o injustificável. O ministro Levandowsky demoliu-o ítem por ítem num voto coragem, dignidade e não importa que se diga que a decisão do STF teve o propósito de evitar uma crise política aguda envolvendo as forças armadas e o Estado.
O que são forças armadas? Estão à margem da lei, da Constituição? São intocáveis?
O que é uma sessão de tortura por exemplo. Um “patriota” tenha ele o nome de general Bandeira, ou coronel Ulstra, ou general Torres de Mello praticando violências físicas, morais e de toda a sorte contra pessoas indefesas que tiveram a coragem de se opor a uma ação militar que depôs um governo legítimo, o de João Goulart.
Quantos torturados, quantos desaparecidos, quantas mulheres estupradas, quantos inocentes,mera suspeita de contrariar a ordem vigente pela força, sofreram em mãos de criminosos travestidos de defensores da democracia e pior, da liberdade?
Uma recente entrevista do general Newton Cruz, ex-comandante militar do Planalto à época do ditador Figureiredo, há uma clara admissão que o atentado do Riocentro foi planejado para forjar uma ação “terrorista” e servir de pretexto para a continuidade do golpe um golpe dentro do golpe. É digno de ser estar nas forças armadas um oficial que tenha participado de semelhante ação?
Que espécie de patriotismo é esse?
De coragem, de bravura?
Isso tem outro nome, covardia e covardia das inomináveis, se é que covardia possa ser nominável; E se o for, nesse caso o nome é crime, é boçalidade.
A ditadura militar no Brasil e na América Latina foi um momento em que interesses norte-americanos (os EUA não são uma nação, mas um conglomerado de empresas escoradas num arsenal capaz de destruir o mundo duzentas vezes ou mais) vieram para garantir seus privilégios aqui em conluio com as elites econômicas do País, podres, sempre podres e erguidas no fausto FIESP/DASLU, ou em figuras repulsivas como hoje a senadora Kátia Abreu. O Brasil é o mais importante país latino-americano e a possibilidade real e concreta de escapar do controle dos “donos”, foi isso, movimentou os “patriotas” das nossas forças armadas, a maioria deles, sob o comando de um general com o nome de Vernon Walthers, que falava o português para se fazer entendido e bem entendido quando gritava “de quatro”.
Ficaram. Permanecem em sua grande maioria.
A decisão do STF não apaga a História e nem impede que os crimes cometidos por torturadores sejam mantidos em sigilo. O repúdio do brasileiro há que se dar pelo conhecimento do inteiro teor da estupidez dessa gente.
Nem se pode exigir muito do STF. Faltam figuras como Ribeiro da Costa, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal, Adauto Lúcio Cardoso e outros tantos que não se intimidariam, nunca, com forças armadas que se colocam à margem da lei, dos interesses nacionais e acoitam, é a palavra exata, procedimentos criminosos.
E não eram só militares. Conheci um promotor, Joaquim Simeão de Faria Filho, que presenciava sessões de tortura em sua área de atuação e depois “cantava” mulheres de presos políticos com promessas de “atenuar” as penas.
O Brasil é maior que o medo dessa gente, os ministros que votaram pela impunidade dos torturadores.
E essa não é uma página virada História. Ela há que ficar aberta para que se saiba que por trás dessa “canalhice patriótica” existem os que são capazes de sonhar e lutar por um ideal ainda que ele tenha custado a vida de muitos e muitos nos anos da barbárie militar.
É vergonhoso que torturadores se escondam atrás desse tipo de decisão. São fortes com os fracos, os que estavam presos, algemados, submissos nos cárceres, são fracos com os generais dos EUA que os mandam calar, ficar de quatro, garantir que o Brasil seja apenas um braço do império mais perverso e cruel de todos os tempos.
Ou com os empresários, os banqueiros, os latifundiários, cúmplices de uma época que não pode ser esquecida para que nunca mais se repita.
A ditadura apenas se transformou num arremedo de democracia. Tivemos Collor tentando entregar o País. FHC, o Collor II, entregando o País e agora temos a ameaça José Collor Arruda Serra.
Mais ou menos o que o general Golbery, um dos arquitetos do movimento de 64 dizia. “Sístole e diástole”. Ora de abertura, ora de fechamento, mas sempre a mesma coisa.
Ou o povo varre essa corja, ou então William Bonner, membro da corja, terá tido razão. Um bando de Homer Simpson, prontos a aceitar a coleira.
Não é o caso de muitos, de milhões e certamente seremos capazes de manifestar por todas as formas possíveis a repugnância por esse vômito chamado decisão do STF.
*Laerte Braga é jornalista. Nascido em Juiz de Fora, onde mora até hoje, trabalhou no "Estado de Minas" e no "Diário Mercantil". É colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?".
2 comentários:
Concordo com o Laerte e com todos aqueles que têm escrito, condenando a decisão do STF, e achando que essa maldita decisão não passa de uma autorização para se continue a torturar impunemente no nosso país. Meus pêsames, Srs. juízes, espero que algum dos seus também seja torturado um dia, embora todos saibamos que, atualmente, as vítimas da tortura sejam os pobres, que não têm nenhum criminalista para defendê-los.
Laerte Braga, meu caro, obrigado por este artigo. Ao lê-lo senti como que um alívio. É o que eu precisava ouvir e o que gostaria de dizer. O fato é que a descisão do STF até me deprimiu. Não há como aceitar o que esta gente fez com o Brasil e com os brasileiros e nada que possa justificar a barbárie.
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