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A Universidade de Coimbra justificou da seguinte maneira o título de Doutor Honoris Causa ao cidadão Lula da Silva: “a política transporta positividade e com positividade deve ser exercida. Da poesia para o filósofo, do filósofo para o povo. Do povo para o homem do povo: Lula da Silva”

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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Para não dizer que não falamos de carnaval 3: Bombalá e os loucos foliões














Bombalá e os loucos foliões


É carnaval. Milhões de brasileiros caem na folia. No Rio de Janeiro, em todos os bairros, pululam centenas de blocos de rua. Um deles é o ‘Tá Pirando, Pirado, Pirou’, criado na Urca, em 2005, por usuários dos serviços de saúde mental e funcionários do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e do Instituto Pinel. No ano passado, recebeu o prêmio ‘Loucos pela Diversidade’ do Ministério da Cultura. Neste ano, desfilou pela Av. Pasteur, com o enredo “Ser maluco é fácil, difícil é ser eu”, animado pela Bateria Batuque de Bamba.

Esse enredo, que nos convida a uma reflexão sobre a identidade e a exclusão do louco, foi proposto por João Batista, um portador de sofrimento psíquico. Ele sentiu na própria pele a violência do isolamento em um hospício e, com base nisso, sentenciou: “ser maluco é fácil, basta você ter sua primeira internação no manicômio e o sistema faz o resto”. Concluiu, depois de ser tratado pelos novos serviços instituídos pela Lei da Psiquiatria de 2001: “Como é difícil ser eu!”. Criou, sem querer, o mote para o enredo.

A lógica manicomial dá muito pano para fantasias e alegorias, com seu tratamento agressivo, camisa-de-força, psicocirurgia e eletroencefalograma duvidoso, que não deixam o eu ser eu. Um dos bonecos gigantes que desfilou no bloco, movido por um folião, tinha o corpo, os braços e as pernas formados por caixas de psicotrópicos. “Foi comovente ver ex-pacientes de longos anos de internação num macro-hospício participando da evolução da comissão de frente” declarou a psicóloga Rosaura Braz.

O desfile do bloco “Tá pirando” carnavalizou, dessa forma, as idéias de Michel Foucault que estudou, no seu livro História da Loucura na Idade Clássica, as diferentes formas de tratar os distúrbios mentais nos últimos séculos. O filósofo francês demonstrou que os loucos, que viviam vagando pelas cidades, passaram a ser internados não por razões médicas, mas com objetivo de vigiar, controlar e punir. O hospício, em vez de um lugar de cura, se tornou uma fábrica de loucos.

Toma limonada

O enredo do bloco toca na ferida. Hoje parece absurdo, mas antes muita gente acreditava e outros fingiam crer que a loucura era contagiante, que a doença mental podia ser transmitida através do convívio e que, por isso, o louco - um doente incurável e perigoso – devia ser internado, segregado e excluído da sociedade. Essa idéia foi tão nociva, burra e interesseira quanto a crença em ‘raças inferiores’. No caso da mulata, o racismo de Lamartine Babo dava um desconto, quando cantava: “mas como a cor não pega, mulata, eu quero o teu amor”.

Já com a loucura, que ‘pega’, não havia atenuantes. O remédio para essa espécie de ‘lepra mental’, além da discriminação, era o confinamento. Criou-se o ‘medo do contágio’ como uma justificativa ideológica para impedir que os loucos ficassem vagando nos grandes centros urbanos, alterando a ordem. No entanto, nas cidades de pequeno e médio porte, onde o poder político era, felizmente, fraco ou incompetente para organizar a repressão, a idéia não vingou. Foi o caso de Manaus.

Os loucos, alguns de famílias tradicionais, circulavam livremente pelas ruas da capital amazonense, até os anos 50/60, ainda que a convivência com a população nem sempre fosse harmoniosa. Às vezes eram escorraçados pela molecada, mas freqüentemente eram tratados com respeito e conseguiam estabelecer relações solidárias com os moradores dos bairros, que em certa medida embarcavam em suas fantasias.

O mais famoso deles - o Bombalá - foi cantado em prosa e verso por Thiago de Mello, Arthur Engrácio, Aristófanes de Castro e outros. Ele adorava desfilar, vestido com uma calça pega-marreca. Era ele quem abria os desfiles da Polícia Militar, nas festas cívicas, regendo a banda de música da PM, com uma vara na mão, que lhe servia de batuta, gesticulando e marchando com passos marciais e ritmados. De uma família com posses, residia num casarão da Av. Joaquim Nabuco, perto da Praça da Polícia.

Dizem que Bombalá chegou a estudar música. O certo é que quase nunca perdia uma apresentação no coreto da Praça da Polícia, onde a banda da PM sempre contava com a sua batuta de maestro. Cheguei a vê-lo, em minha infância, desfilando à frente do Colégio Estadual do Amazonas, na parada escolar de 7 de setembro, murmurando em forma cadenciada: toma-limonada-pra-cagar-de-madrugada, toma-limonada-pra-cagar-de-madrugada.

Cheira, Macaxeira

Bombalá é o primeiro de uma longa lista, que tem Carmen Doida, Nega Maluca, Nega Charuta, Neide Pipoca, Tom Mix, Macaxeira, Zé Bundinha, Antônio Doido, Raimundo Mucura, Professor Guilherme, Solaninho, Porca Vadia, Bonitão – primo do governador Álvaro Maia - e tantos outros. É possível mapeá-los bairro a bairro.

Cada um com sua mania. Tom Mix, o xerife, nasceu no velho oeste e entre bravos se criou. Tinha a cara bexiguenta. Nunca casou para não atrapalhar sua missão na terra. Era viciado em filme de bang-bang. Morava numa casa na esquina da Henrique Martins com Rui Barbosa, de propriedade de seu irmão, o coronel Trigueiro, que trabalhava no Palácio do Governo. A vizinhança com os cines Polytheama e Guarani alimentava seu vicio: não perdia uma sessão. Assistia todos os seriados. Pulou para dentro das telas e passou a viver lá, enfrentando índios e bandidos que assaltavam diligências.

Para isso, Tom Mix, já meio coroa, circulava pelo centro de Manaus sempre vestido de cowboy: botas country, calça de brim ajustada, camisa quadriculada com uma estrela no peito, jaqueta de couro, cinto com vistosa fivela, onde estavam penduradas duas cartucheiras com revolver de espoleta e, para completar, um chapéu cor de areia com arame embutido na aba, que ele só retirava para dar bom-dia às donzelas ou quando enfrentava ladrões de gado, montado no cavalo Champion, emprestado do Gene Autry.

A mania de Macaxeira, outro da lista, era organizar a trafegabilidade das vias. Ele era mais que um guarda, era o guardião do trânsito, capaz de identificar os pontos de engarrafamento e de agilizar o fluxo de veículos, que na época incluía até carroças. Com um giz, demarcava seu espaço riscando um círculo no asfalto, em cruzamentos importantes. De lá, apitava, gesticulava, parava ou fazia avançar os carros.

Quando alguém para molestá-lo gritava: “Macaxeira”, ele descia de suas tamancas e dava o troco, rimando: “Pega no meu pau e cheira”. Foi o que aconteceu com a então jovem Charufe Nasser, minha amiga, multada por ele quando, numa bicicleta, furou o sinal da Monsenhor Coutinho com a Ferreira Pena.  Até hoje ele está traumatizada.

Há um pouco mais de três anos, Rogelio Casado, coordenador do Programa Estadual de Saúde Mental, começou a recolher depoimentos sobre os loucos de rua, em Manaus, com o objetivo de avaliar como a memória pode contribuir para a inclusão social dos loucos na cultura de nossos tempos. Ele zela pelas lembranças dos loucos como o jornalista Carlos Zamith, com seu Baú Velho, cuida da memória do futebol amazonense: com devoção, com unção.

Vários depoimentos foram publicados no blog Picica administrado por Rogelio Casado, onde podem ser encontrados também registros sobre os avanços e recuos da Reforma Psiquiátrica, notas sobre os preparativos da 4ª. Conferencia Nacional de Saúde Mental, que se realizará em julho e notícias sobre blocos pelo Brasil afora que reúnem médicos, enfermeiros, pacientes, familiares e simpatizantes.

Só no Rio de Janeiro, além do ‘Tá pirando’, tem o ‘Loucura Suburbana’, do Instituto Nise da Silveira, que já desfilou dez anos seguidos pelas ruas do Engenho de Dentro, e o ‘Tremendo nos nervos’ do Centro Psiquiátrico (CPRJ), que sai na Praça da Harmonia, no bairro da Saúde. Com seis meses de antecedência, eles começam os preparativos: fazem oficinas, escolhem um tema, estudam o enredo, selecionam o samba e trabalham a produção de fantasias, bonecos e estandarte.

A participação dos pacientes na produção do bloco já faz parte do próprio tratamento, porque ajuda na recuperação, colabora com a inclusão social e, sobretudo, enfrenta o estigma da loucura com coragem e alegria. Se, em francês, loucura é ‘folie’, então esses blocos incorporam os verdadeiros foliões, cuja alegria, essa sim, é contagiante. O Bombalá, certamente, se vivo, teria gostado de desfilar em algum deles.

P.S. – Agradecemos as informações e as fotos feitas pela psicóloga Rosaura Maria Braz.
Links para outras crônicas sobre os loucos de Manaus:
Crônica03-02-2008
Crônica02-07-2006
Crônica25-06-2006
Crônica18-12-2005
Crônica=cronica57


As boas-vindas a José Ribamar Bessa Freire, nosso novo colaborador. Ribamar Bessa é antropólogo, natural de Manaus e assina no "Diário do Amazonas" coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa "Pró-Índio".  Mantém o blog "Taqui pra ti" e, a partir de hoje, colabora com este "Quem tem medo do Lula?"

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