Pois agora, com a Manga Ancha nas mãos, vejo que impraticável seria eu tentando desentortar tão longa história, pois de que adianta tentar endireitar o que há muito foi entortado por interesses religiosos, políticos, econômicos e que tais?
Por Raul Longo (*)
É com grande satisfação que recebo pelas mãos de meu amigo ibero germânico, Santiago Serrano, o nº 2 da Manga Ancha, um presente que já me fora prometido pela querida Antonia Liberal Trinidad.
Foi ontem e embora pareça precipitado me pôr a comentar a publicação sem ainda ter lido mais do que três ou quatro artigos, posso explicar o entusiasmo. É que no ano passado fui convidado por Santiago, espanhol nascido na Alemanha, para proferir uma palestra no dia “E” do Instituto Miguel de Cervantes de Florianópolis.
E então conheci a Tônia, como carinhosamente nos referimos à espanhola de Espanha mesmo: Antonia Trinidad, quem, por primeira vez, me falou do Manga Ancha.
Já naquela primeira conversa a proposta da revista me impressionou por vir de encontro exatamente ao que pensei abordar quando convidado pelo Santiago. Na verdade, no primeiro momento quase decepcionei o amigo explicando que a Espanha é um universo muito grande para meu pouco conhecimento. Mas o Santiago insistiu e acabei aceitando para discorrer sobre dúvidas que há muito alimento sobre as verdadeiras origens da civilização ocidental.
Desacostumado a falar em público, receei não ser capaz de explicar porque discordo de se conferir os fundamentos da civilização ocidental à cultura greco-romana. Mas me deixaram muito à vontade em meio as amistosas relações entre professores, estudantes, dirigentes e público visitante -- que já conhecera na década de 80 quando o Instituto Cervantes de São Paulo muito me honrou com o tão significativo prêmio em poesia – e nem me engasguei na explanação. No entanto, pela exiguidade de tempo, não consegui expor sequer metade do tanto que descobri afastando as vendas que nos impedem um olhar menos tendencioso à história.
Reduzido tempo para falar de Espanha, pois como falar de Espanha sem incluir Portugal, já que tudo era e ainda é uma só Ibéria? E como contar de Ibéria sem falar dos celtas, os mesmos que dali de Espanha e Portugal emigraram para a Grão Bretanha e a Irlanda, formando as primeiras civilizações humanas do ocidente?
A partir daí foi impossível não retroceder mais, para antes da dispersão dos povos das línguas indo europeias que ocuparam o continente, vindos da Anatólia, hoje Turquia; e encontraram o Euskadi. Muito anterior ao latim, é o mais antigo idioma falado na Europa moderna, pois o povo Vasco de França e Espanha, conforme atestam as pesquisas arqueológicas, é a continuidade do Cro-Magnon que corresponde à última evolução do Neandertal. Ou seja: o que somos.
Correndo contra o pouco tempo (não o das eras, mas o cedido para minha explanação) tive de pular para o idioma púnico dos cartagineses, descendentes dos fenícios. Navegando pela costa mediterrânica da África, atravessaram o Estreito de Gibraltar para o outro lado onde pensaram reencontrar o mesmo hirax que os portugueses chamam de damão, um pequeno roedor que habita as praias dos africanos que os denominam por dassie. Em púnico, o nome do bichinho que para brasileiros seria uma espécie de preá, era saphan e, confundindo os coelhos da costa da Ibéria com aquele roedor, apesar das diferenças de comprimento de orelhas, os teimosos cartagineses deram à região o nome de I(costa, ilha)SAPHAN EA(região). A costa da região dos coelhos ou apenas Isaphanea, modernamente: Espanha.
Imaginei que nessa altura algum ouvinte me interromperia para lembrar, com muita propriedade por sinal, que isso de Cartago foi há milhares de anos e apesar de descenderem dos fenícios que desenvolveram o alfabeto atualmente utilizado pelos povos ocidentais, difundido ao restante da Europa ali pela Ibéria, não se pode considerar que tenham exercido maiores influências na formação da civilização ocidental do que gregos e romanos.
Isso me tomou um tempo enorme, pois tive de lembrar que tampouco a civilização grega foi autóctone das ilhas do Egeu, pois não há como negar influências egípcias na civilização minoica que, posteriormente à queda de Creta, também contribuiu com a formação das civilizações micênicas dos aqueus que originaram a Grécia, vindos das planícies da eurásia como nômades indo-europeus. Trouxeram conhecimentos de povos ainda mais antigos, como aqueles mesmos sumérios que ensinaram a escrita aos semitas como os fenícios que aperfeiçoaram a representação gráfica do idioma. E, graças a terem ido para a Isaphanea, não precisamos hoje estar a cunhar tabuas de argila.
Além de historiadores conferirem aos sumérios a invenção da roda e da cerveja, dando origem ao dístico: “se for dirigir não beba”, há os que desconfiam de que a eles se reportaria Platão em suas ilações sobre o fantástico povo da Atlântica. Mas, em verdade, eram da Mesopotâmia.
Enfim, o que importa é que menos do que a mitologia greco-romana com Zeus ou Júpiter, mais evocamos histórias contadas nos primórdios da humanidade e que pela escrita cuneiforme gravada em pedras e tábuas de argila, sobreviveram até hoje. É o caso do Dilúvio bíblico, um raconto dos semitas hebreus a partir do original apreendido nos tempos em que viveram com seus primos assírios na Babilônia, hoje a iraquiana Bagdá bombardeada pelos norte-americanos, mas que foi a primeira concentração urbana do mundo, construída pelos sumérios sob o nome de Ur. Aliás, só para ilustrar, o Noé do original sumério, chamava-se mesmo é Ut Napist, mas disso não devo ter falado porque ali não tive tempo pra ilustrar nada.
Rapidamente lembrando que apesar dos sumérios não terem origem conhecida e tampouco deixado descendências étnicas, deles se herdou, através dos assírios e outros semitas, muito do que hoje usufruímos como conhecimentos da civilização ocidental, aproveitei apenas para desmentir a história de ódios milenares entre semitas hebreus e semitas árabes, usada para justificar as atuais guerras de saqueio de petróleo. E daí parti logo para a Invasão de Espanha.
Não eu, claro. Quem me dera! Se pudesse conquistaria todos aqueles museus cheios de Velásquez e Miró. Todos aquelas praças, bares, cafés! Barcelona inteira com a todas as obras de Gaudí! Granada seria minha! Alhambra! Andaluzia inteira!
Seria uma maravilha! Despertaria com as pantomimas do Manuel de Falla e adormeceria nos acordes de Paco de Lucia para uma longínqua voz flamenca!
Marcharia de braços com Dolores Ibarruri, juntos bradando: - No pasarán!
Cantaria em vermelho e amarelo os galos de Picasso que, a meu pedido pintaria o de Barcelos para cantar em verde a inocência do galego.
Ah! E seriam tantas das castanholas, do esvoaçar de mantilhas e atirar de flores, que até os touros e os toureiros, enfim, se apaziguariam numa inusitada amizade documentada por Buñuel.
Só para espicaçar, Dali cochicharia em meu ouvido: “- Mejor si fuera Almodóvar!”
Às cinco da tarde leria versos de Lorca, pelas manhãs os de Antonio Machado e à noite epistolários de Unamuno!
Ah... que grande conquistador eu seria! Mas invadir Espanha, jamais!
Tampouco o Tárique, o general mouro que atravessou o estreito de Gibraltar em 711 e, segundo a lenda, mandou queimar os navios para que seus soldados não pudessem voltar.
Convenhamos que por mais confiante, general algum cometeria a imprudência de destruir a única rota de fuga do próprio exército, ainda menos em terras desconhecidas de um inimigo igualmente ignorado.
Felizmente os atentos participantes do Dia “E” concordaram com meus incipientes conhecimentos de estratégia militar e pude continuar reproduzindo registros históricos sobre brigas de herdeiros visigodos apoiados por facções da Igreja Católica.
Santiago não deve ter gostado muito disso, mas a verdade é que naquele século 8 os ancestrais góticos de seus amigos germânicos é que mandavam na Espanha e um certo Olião, bispo muito culto e viajado que já estivera em Marrocos, foi pedir ajuda ao Califa para acabar com os maus tratos do rei visigodo à cristãos e judeus. Pelas leis maometanas todo fiel era obrigado a defender os povos dos Livros Sagrados, sendo eles: a Bíblia, o Torá, e o Alcorão.
Devido aos desvios tendenciosos da história, essa informação pode parecer estranha, mas se os judeus têm dois profetas a menos (Cristo e Maomé) e os cristãos um (Maomé), os muçulmanos não excluem nenhum e seus livros são sagrados por igual. Felizmente ninguém era fundamentalista na sala e pude revelar que foram os judeus que abriram os portais de Toledo para a triunfal entrada de Tárique, na então maior cidade Ibérica.
Não lembro se cheguei a cogitar a possibilidade de Tárique ter percebido que ao contrário das informações de Olião, nem só Roderick, o visigodo rei de Toledo, era o único a perseguir cristãos de linhas divergentes e judeus em geral, pois a estes a Igreja Católica Romana sempre culpou pela morte do Cristo que eles mesmos, os romanos, crucificaram. Mas confirmei o irrefutável: por 8 séculos e muitas gerações os Ibéricos foram árabes.
E como um povo deixa de ser o que foi por tantas gerações. Gerações que na América sequer se produziu, pois faltam ainda 3 séculos para sermos tão americanos: do sul, do centro ou do norte; quanto os ibéricos foram e são árabes.
Claro que não tive tempo para tais cogitações, me limitando apenas a considerações sobre a arquitetura liberta das abafadas masmorras que se erigiam dos porões aos cimos das torres dos castelos góticos, substituída pelas arejadas aberturas das arcadas mouriscas com jardins e espelhos d’águas ao centro. As tenebrosas gárgulas substituídas por curvilíneas abobadas de graciosos arabescos, comparando ainda o contraste da ampla urbanidade das ibéricas cidades mouras aos amontoados de casarios as margens de estreitos e tortuosos caminhos das conglomerações intramuros de cidadelas medievais.
Entre o século setecentos e o ano de 1492 em que foram expulsos os mouros e Colombo chegou à América pela arte da navegação, inexistente na Europa antes do convite à Tárique, no restante da Europa de tudo se morria um pouco.
Se não por aqueles que a Igreja Católica considerou bárbaros até se cristianizarem e pararem de destruir cidades como fizeram com Londres por duas vezes, seria por atritos entre os próprios cristãos como a guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra. Se nem uma coisa nem outra, pelas pestes oriundas da falta de higiene e ignorância, como ocorreu com a Peste Negra que num só surto reduziu a população do continente em 1/3.
Muitas dessas pestes também assolaram a península ibérica, mas embora os cristãos as considerassem castigos divinos e até organizassem progroms que resultaram em centenas de massacres de judeus que ao respeitar costumes semitas de higiene se livraram da peste e levantaram suspeitas de alguma aliança demoníaca, em Ibéria se lidou com tais assuntos de forma diversa.
No século 10, por exemplo, uma investigação empreendida por um médico árabe, Rhases, culminou com a primeira conclusão sobre a origem infecciosa do flagelo da Peste Negra.
Na pressa do curto tempo para minha exposição, certamente não me lembrei do Dr. Rhases, mas sem dúvida enalteci os tantos árabes e judeus que naquele período de 8 séculos alicerçaram os conhecimentos que hoje consagram a chamada civilização ocidental. Conhecimentos que se originam nas primeiras universidades e faculdades das mais diversas ciências: medicina, matemática, filosofia, linguística, astronomia e outras, ali mesmo na Ibéria onde se deu início às metodologias de ensino das ciências em território europeu, resgatando inclusive sábios da antiguidade grega e romana, excomungados pela severa e intolerante Igreja Católica.
Daí minha questão sobre onde se incandesceram as luzes da civilização ocidental: se no ardor cultural da Península Ibérica ou nas trevas de Roma, Florença, Paris, Avignon e outras cidadelas medievais?
Por mais que se negue a história, impossível esconder que ao tempo em que nas cidades ibéricas floresceram a cultura, as artes e a ciência; o restante da Europa viveu os mesmos 8 séculos literalmente entre a cruz e a espada, em sangrentas disputas por feudos terrenos e celestiais, quando muito discutindo sobre o eterno e o secular.
O Renascimento que chegou em Florescença no século XIV, já se iniciara em muitas cidades ibéricas bastante antes. Para citar apenas um exemplo, Córdoba, com cerca de 350 mil habitantes em 2007, quando sede do Califado e o mais importante centro urbano do mundo de sua época, chegou a atingir hum milhão de habitantes atendidos por 70 bibliotecas, uma delas com mais de 400 mil volumes.
Demonstrando a tolerância e interação cultural inexistente em qualquer outra parte, ainda permanecem em uma rua de Toledo três templos, um ao lado de outro, construídos nesse período: uma igreja católica, uma sinagoga e uma mesquita.
O canto moçárabe que tanto encantou ao Papa Gregório I, e por isso os conhecemos como Cantos Gregorianos, em verdade surgiram da integração cultural entre discípulos cristãos e seus mestres árabes. Como também da arte moçárabe surgiram as iluminuras, adotadas pelos escribas dos monastérios católicos.
Não por acaso, depois da Lenda de Genji da japonesa Sra. Murasaki Shikibu, considerado o primeiro romance da história da literatura, o segundo foi Lazarillo de Tormes de um anônimo espanhol. E o terceiro é a maior obra literária de todos os tempos, o Dom Quixote de La Mancha do grande mestre Miguel de Cervantes que, evidentemente, é espanhol. Ibérico.
Evidente que não há nenhum desmerecimento ou desvalorização a Shakespeare, Voltaire, Dante, Goethe e tantos outros tão eminentes gênios de todas as artes em cada nacionalidade. Não se está aqui discutindo patriotadas e ufanismos anacrônicos. Sequer descendo de ibéricos ou árabes. Um pouco de português, de cigano e negro africano, com supremacia de genes itálicos. Mas quando se fala em civilização ocidental como majoritariamente proveniente da cultura greco-romana, me pego questionando por que então usamos alfabeto e números de origens arábicas e não os algarismos romanos e alfa, beta, gama ou ômega?
Por que rezamos para o mesmo deus semita e não levamos a astrologia grega tão a sério quanto a astronomia assíria? Por que nosso vocabulário tem mais palavras formadas a partir do árabe do que do grego, apesar de nossos idiomas serem uma derivação do latim? Será mesmo uma derivação, ou o latim se impôs através do Império Romano sucedido pelo Católico Romano? Um de César, outro do Papa, mas o mesmo Império que nos dominou a todos por toda a Europa, Oriente Médio e África..
Não sei se haveria tempo para todas as questões que me incomodam nessa lenda de cultura greco-romana, mas para encerrar minha palestra, projetaria imagens de arabescos comparando-os a tão admirada e moderna arte do holandês Maritus Escher. Mas a verdade é que não cheguei nem a metade do que pretendia expor. E quando disso me lamentei com a Tônia Trinidad, foi que ela me falou da revista Manga Ancha, uma proposta ibero-marroquina.
E pensei comigo: “essa Tônia está mais maluca do que eu que sonho em resgatar na história, uma possibilidade de árabes e ibéricos se descobrir com um só povo em dois continentes, apesar de governantes malucos que destacam frotas bélicas para defender ilhas desertas de um trio de fumadores de haxixe.”
A cada notícia desses governantes expulsando emigrantes de África e mesmo visitantes do Brasil, seja da Espanha, da Itália ou da França; a proposta de uma revista tal qual Tônia me contou, me parecia mais impraticável.
Pois agora, com a Manga Ancha nas mãos, vejo que impraticável seria eu tentando desentortar tão longa história, pois de que adianta tentar endireitar o que há muito foi entortado por interesses religiosos, políticos, econômicos e que tais?
Importante não é acusar onde está a mentira, nem dizer que mentem. Importante é mostrar a verdade, como fazem na Manga Ancha a espanhola Ada Salas ao formatar seu mito Portugal. Ou o marroquino Mohamed Dahi ao submergir em busca de tesouros literários espanhóis para compará-los com as joias lapidadas pelos escritores de seu próprio país. A portuguesa Inês Pedrosa que escalavra os Quixotes de nossas almas ocidentais, magistralmente desnudando nosso verdadeiro umbigo: “Tu és a rota romba e o risco do riso, a Hispânia anti espanhola, o fado falado, o samba de uma língua livre chamada romance e engendrada por ti.”
Só mais um detalhe a qualificar o Manga Ancha: é trilíngue. Português, espanhol e árabe.
E um a desqualificar: não circula no Brasil nem no resto de nossa América ibérica, árabe, índia, negra, afro-asiática. Mas, enfim, já se começa a escrever a história do futuro sem tortuosas tendências de tortos interesses em versões mal contadas.
*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis (SC), onde mantém a pousada “Pouso da Poesia“. É colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.
Foi ontem e embora pareça precipitado me pôr a comentar a publicação sem ainda ter lido mais do que três ou quatro artigos, posso explicar o entusiasmo. É que no ano passado fui convidado por Santiago, espanhol nascido na Alemanha, para proferir uma palestra no dia “E” do Instituto Miguel de Cervantes de Florianópolis.
E então conheci a Tônia, como carinhosamente nos referimos à espanhola de Espanha mesmo: Antonia Trinidad, quem, por primeira vez, me falou do Manga Ancha.
Já naquela primeira conversa a proposta da revista me impressionou por vir de encontro exatamente ao que pensei abordar quando convidado pelo Santiago. Na verdade, no primeiro momento quase decepcionei o amigo explicando que a Espanha é um universo muito grande para meu pouco conhecimento. Mas o Santiago insistiu e acabei aceitando para discorrer sobre dúvidas que há muito alimento sobre as verdadeiras origens da civilização ocidental.
Desacostumado a falar em público, receei não ser capaz de explicar porque discordo de se conferir os fundamentos da civilização ocidental à cultura greco-romana. Mas me deixaram muito à vontade em meio as amistosas relações entre professores, estudantes, dirigentes e público visitante -- que já conhecera na década de 80 quando o Instituto Cervantes de São Paulo muito me honrou com o tão significativo prêmio em poesia – e nem me engasguei na explanação. No entanto, pela exiguidade de tempo, não consegui expor sequer metade do tanto que descobri afastando as vendas que nos impedem um olhar menos tendencioso à história.
Reduzido tempo para falar de Espanha, pois como falar de Espanha sem incluir Portugal, já que tudo era e ainda é uma só Ibéria? E como contar de Ibéria sem falar dos celtas, os mesmos que dali de Espanha e Portugal emigraram para a Grão Bretanha e a Irlanda, formando as primeiras civilizações humanas do ocidente?
A partir daí foi impossível não retroceder mais, para antes da dispersão dos povos das línguas indo europeias que ocuparam o continente, vindos da Anatólia, hoje Turquia; e encontraram o Euskadi. Muito anterior ao latim, é o mais antigo idioma falado na Europa moderna, pois o povo Vasco de França e Espanha, conforme atestam as pesquisas arqueológicas, é a continuidade do Cro-Magnon que corresponde à última evolução do Neandertal. Ou seja: o que somos.
Correndo contra o pouco tempo (não o das eras, mas o cedido para minha explanação) tive de pular para o idioma púnico dos cartagineses, descendentes dos fenícios. Navegando pela costa mediterrânica da África, atravessaram o Estreito de Gibraltar para o outro lado onde pensaram reencontrar o mesmo hirax que os portugueses chamam de damão, um pequeno roedor que habita as praias dos africanos que os denominam por dassie. Em púnico, o nome do bichinho que para brasileiros seria uma espécie de preá, era saphan e, confundindo os coelhos da costa da Ibéria com aquele roedor, apesar das diferenças de comprimento de orelhas, os teimosos cartagineses deram à região o nome de I(costa, ilha)SAPHAN EA(região). A costa da região dos coelhos ou apenas Isaphanea, modernamente: Espanha.
Imaginei que nessa altura algum ouvinte me interromperia para lembrar, com muita propriedade por sinal, que isso de Cartago foi há milhares de anos e apesar de descenderem dos fenícios que desenvolveram o alfabeto atualmente utilizado pelos povos ocidentais, difundido ao restante da Europa ali pela Ibéria, não se pode considerar que tenham exercido maiores influências na formação da civilização ocidental do que gregos e romanos.
Isso me tomou um tempo enorme, pois tive de lembrar que tampouco a civilização grega foi autóctone das ilhas do Egeu, pois não há como negar influências egípcias na civilização minoica que, posteriormente à queda de Creta, também contribuiu com a formação das civilizações micênicas dos aqueus que originaram a Grécia, vindos das planícies da eurásia como nômades indo-europeus. Trouxeram conhecimentos de povos ainda mais antigos, como aqueles mesmos sumérios que ensinaram a escrita aos semitas como os fenícios que aperfeiçoaram a representação gráfica do idioma. E, graças a terem ido para a Isaphanea, não precisamos hoje estar a cunhar tabuas de argila.
Além de historiadores conferirem aos sumérios a invenção da roda e da cerveja, dando origem ao dístico: “se for dirigir não beba”, há os que desconfiam de que a eles se reportaria Platão em suas ilações sobre o fantástico povo da Atlântica. Mas, em verdade, eram da Mesopotâmia.
Enfim, o que importa é que menos do que a mitologia greco-romana com Zeus ou Júpiter, mais evocamos histórias contadas nos primórdios da humanidade e que pela escrita cuneiforme gravada em pedras e tábuas de argila, sobreviveram até hoje. É o caso do Dilúvio bíblico, um raconto dos semitas hebreus a partir do original apreendido nos tempos em que viveram com seus primos assírios na Babilônia, hoje a iraquiana Bagdá bombardeada pelos norte-americanos, mas que foi a primeira concentração urbana do mundo, construída pelos sumérios sob o nome de Ur. Aliás, só para ilustrar, o Noé do original sumério, chamava-se mesmo é Ut Napist, mas disso não devo ter falado porque ali não tive tempo pra ilustrar nada.
Rapidamente lembrando que apesar dos sumérios não terem origem conhecida e tampouco deixado descendências étnicas, deles se herdou, através dos assírios e outros semitas, muito do que hoje usufruímos como conhecimentos da civilização ocidental, aproveitei apenas para desmentir a história de ódios milenares entre semitas hebreus e semitas árabes, usada para justificar as atuais guerras de saqueio de petróleo. E daí parti logo para a Invasão de Espanha.
Não eu, claro. Quem me dera! Se pudesse conquistaria todos aqueles museus cheios de Velásquez e Miró. Todos aquelas praças, bares, cafés! Barcelona inteira com a todas as obras de Gaudí! Granada seria minha! Alhambra! Andaluzia inteira!
Seria uma maravilha! Despertaria com as pantomimas do Manuel de Falla e adormeceria nos acordes de Paco de Lucia para uma longínqua voz flamenca!
Marcharia de braços com Dolores Ibarruri, juntos bradando: - No pasarán!
Cantaria em vermelho e amarelo os galos de Picasso que, a meu pedido pintaria o de Barcelos para cantar em verde a inocência do galego.
Ah! E seriam tantas das castanholas, do esvoaçar de mantilhas e atirar de flores, que até os touros e os toureiros, enfim, se apaziguariam numa inusitada amizade documentada por Buñuel.
Só para espicaçar, Dali cochicharia em meu ouvido: “- Mejor si fuera Almodóvar!”
Às cinco da tarde leria versos de Lorca, pelas manhãs os de Antonio Machado e à noite epistolários de Unamuno!
Ah... que grande conquistador eu seria! Mas invadir Espanha, jamais!
Tampouco o Tárique, o general mouro que atravessou o estreito de Gibraltar em 711 e, segundo a lenda, mandou queimar os navios para que seus soldados não pudessem voltar.
Convenhamos que por mais confiante, general algum cometeria a imprudência de destruir a única rota de fuga do próprio exército, ainda menos em terras desconhecidas de um inimigo igualmente ignorado.
Felizmente os atentos participantes do Dia “E” concordaram com meus incipientes conhecimentos de estratégia militar e pude continuar reproduzindo registros históricos sobre brigas de herdeiros visigodos apoiados por facções da Igreja Católica.
Santiago não deve ter gostado muito disso, mas a verdade é que naquele século 8 os ancestrais góticos de seus amigos germânicos é que mandavam na Espanha e um certo Olião, bispo muito culto e viajado que já estivera em Marrocos, foi pedir ajuda ao Califa para acabar com os maus tratos do rei visigodo à cristãos e judeus. Pelas leis maometanas todo fiel era obrigado a defender os povos dos Livros Sagrados, sendo eles: a Bíblia, o Torá, e o Alcorão.
Devido aos desvios tendenciosos da história, essa informação pode parecer estranha, mas se os judeus têm dois profetas a menos (Cristo e Maomé) e os cristãos um (Maomé), os muçulmanos não excluem nenhum e seus livros são sagrados por igual. Felizmente ninguém era fundamentalista na sala e pude revelar que foram os judeus que abriram os portais de Toledo para a triunfal entrada de Tárique, na então maior cidade Ibérica.
Não lembro se cheguei a cogitar a possibilidade de Tárique ter percebido que ao contrário das informações de Olião, nem só Roderick, o visigodo rei de Toledo, era o único a perseguir cristãos de linhas divergentes e judeus em geral, pois a estes a Igreja Católica Romana sempre culpou pela morte do Cristo que eles mesmos, os romanos, crucificaram. Mas confirmei o irrefutável: por 8 séculos e muitas gerações os Ibéricos foram árabes.
E como um povo deixa de ser o que foi por tantas gerações. Gerações que na América sequer se produziu, pois faltam ainda 3 séculos para sermos tão americanos: do sul, do centro ou do norte; quanto os ibéricos foram e são árabes.
Claro que não tive tempo para tais cogitações, me limitando apenas a considerações sobre a arquitetura liberta das abafadas masmorras que se erigiam dos porões aos cimos das torres dos castelos góticos, substituída pelas arejadas aberturas das arcadas mouriscas com jardins e espelhos d’águas ao centro. As tenebrosas gárgulas substituídas por curvilíneas abobadas de graciosos arabescos, comparando ainda o contraste da ampla urbanidade das ibéricas cidades mouras aos amontoados de casarios as margens de estreitos e tortuosos caminhos das conglomerações intramuros de cidadelas medievais.
Entre o século setecentos e o ano de 1492 em que foram expulsos os mouros e Colombo chegou à América pela arte da navegação, inexistente na Europa antes do convite à Tárique, no restante da Europa de tudo se morria um pouco.
Se não por aqueles que a Igreja Católica considerou bárbaros até se cristianizarem e pararem de destruir cidades como fizeram com Londres por duas vezes, seria por atritos entre os próprios cristãos como a guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra. Se nem uma coisa nem outra, pelas pestes oriundas da falta de higiene e ignorância, como ocorreu com a Peste Negra que num só surto reduziu a população do continente em 1/3.
Muitas dessas pestes também assolaram a península ibérica, mas embora os cristãos as considerassem castigos divinos e até organizassem progroms que resultaram em centenas de massacres de judeus que ao respeitar costumes semitas de higiene se livraram da peste e levantaram suspeitas de alguma aliança demoníaca, em Ibéria se lidou com tais assuntos de forma diversa.
No século 10, por exemplo, uma investigação empreendida por um médico árabe, Rhases, culminou com a primeira conclusão sobre a origem infecciosa do flagelo da Peste Negra.
Na pressa do curto tempo para minha exposição, certamente não me lembrei do Dr. Rhases, mas sem dúvida enalteci os tantos árabes e judeus que naquele período de 8 séculos alicerçaram os conhecimentos que hoje consagram a chamada civilização ocidental. Conhecimentos que se originam nas primeiras universidades e faculdades das mais diversas ciências: medicina, matemática, filosofia, linguística, astronomia e outras, ali mesmo na Ibéria onde se deu início às metodologias de ensino das ciências em território europeu, resgatando inclusive sábios da antiguidade grega e romana, excomungados pela severa e intolerante Igreja Católica.
Daí minha questão sobre onde se incandesceram as luzes da civilização ocidental: se no ardor cultural da Península Ibérica ou nas trevas de Roma, Florença, Paris, Avignon e outras cidadelas medievais?
Por mais que se negue a história, impossível esconder que ao tempo em que nas cidades ibéricas floresceram a cultura, as artes e a ciência; o restante da Europa viveu os mesmos 8 séculos literalmente entre a cruz e a espada, em sangrentas disputas por feudos terrenos e celestiais, quando muito discutindo sobre o eterno e o secular.
O Renascimento que chegou em Florescença no século XIV, já se iniciara em muitas cidades ibéricas bastante antes. Para citar apenas um exemplo, Córdoba, com cerca de 350 mil habitantes em 2007, quando sede do Califado e o mais importante centro urbano do mundo de sua época, chegou a atingir hum milhão de habitantes atendidos por 70 bibliotecas, uma delas com mais de 400 mil volumes.
Demonstrando a tolerância e interação cultural inexistente em qualquer outra parte, ainda permanecem em uma rua de Toledo três templos, um ao lado de outro, construídos nesse período: uma igreja católica, uma sinagoga e uma mesquita.
O canto moçárabe que tanto encantou ao Papa Gregório I, e por isso os conhecemos como Cantos Gregorianos, em verdade surgiram da integração cultural entre discípulos cristãos e seus mestres árabes. Como também da arte moçárabe surgiram as iluminuras, adotadas pelos escribas dos monastérios católicos.
Não por acaso, depois da Lenda de Genji da japonesa Sra. Murasaki Shikibu, considerado o primeiro romance da história da literatura, o segundo foi Lazarillo de Tormes de um anônimo espanhol. E o terceiro é a maior obra literária de todos os tempos, o Dom Quixote de La Mancha do grande mestre Miguel de Cervantes que, evidentemente, é espanhol. Ibérico.
Evidente que não há nenhum desmerecimento ou desvalorização a Shakespeare, Voltaire, Dante, Goethe e tantos outros tão eminentes gênios de todas as artes em cada nacionalidade. Não se está aqui discutindo patriotadas e ufanismos anacrônicos. Sequer descendo de ibéricos ou árabes. Um pouco de português, de cigano e negro africano, com supremacia de genes itálicos. Mas quando se fala em civilização ocidental como majoritariamente proveniente da cultura greco-romana, me pego questionando por que então usamos alfabeto e números de origens arábicas e não os algarismos romanos e alfa, beta, gama ou ômega?
Por que rezamos para o mesmo deus semita e não levamos a astrologia grega tão a sério quanto a astronomia assíria? Por que nosso vocabulário tem mais palavras formadas a partir do árabe do que do grego, apesar de nossos idiomas serem uma derivação do latim? Será mesmo uma derivação, ou o latim se impôs através do Império Romano sucedido pelo Católico Romano? Um de César, outro do Papa, mas o mesmo Império que nos dominou a todos por toda a Europa, Oriente Médio e África..
Não sei se haveria tempo para todas as questões que me incomodam nessa lenda de cultura greco-romana, mas para encerrar minha palestra, projetaria imagens de arabescos comparando-os a tão admirada e moderna arte do holandês Maritus Escher. Mas a verdade é que não cheguei nem a metade do que pretendia expor. E quando disso me lamentei com a Tônia Trinidad, foi que ela me falou da revista Manga Ancha, uma proposta ibero-marroquina.
E pensei comigo: “essa Tônia está mais maluca do que eu que sonho em resgatar na história, uma possibilidade de árabes e ibéricos se descobrir com um só povo em dois continentes, apesar de governantes malucos que destacam frotas bélicas para defender ilhas desertas de um trio de fumadores de haxixe.”
A cada notícia desses governantes expulsando emigrantes de África e mesmo visitantes do Brasil, seja da Espanha, da Itália ou da França; a proposta de uma revista tal qual Tônia me contou, me parecia mais impraticável.
Pois agora, com a Manga Ancha nas mãos, vejo que impraticável seria eu tentando desentortar tão longa história, pois de que adianta tentar endireitar o que há muito foi entortado por interesses religiosos, políticos, econômicos e que tais?
Importante não é acusar onde está a mentira, nem dizer que mentem. Importante é mostrar a verdade, como fazem na Manga Ancha a espanhola Ada Salas ao formatar seu mito Portugal. Ou o marroquino Mohamed Dahi ao submergir em busca de tesouros literários espanhóis para compará-los com as joias lapidadas pelos escritores de seu próprio país. A portuguesa Inês Pedrosa que escalavra os Quixotes de nossas almas ocidentais, magistralmente desnudando nosso verdadeiro umbigo: “Tu és a rota romba e o risco do riso, a Hispânia anti espanhola, o fado falado, o samba de uma língua livre chamada romance e engendrada por ti.”
Só mais um detalhe a qualificar o Manga Ancha: é trilíngue. Português, espanhol e árabe.
E um a desqualificar: não circula no Brasil nem no resto de nossa América ibérica, árabe, índia, negra, afro-asiática. Mas, enfim, já se começa a escrever a história do futuro sem tortuosas tendências de tortos interesses em versões mal contadas.
*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis (SC), onde mantém a pousada “Pouso da Poesia“. É colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.
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