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A Universidade de Coimbra justificou da seguinte maneira o título de Doutor Honoris Causa ao cidadão Lula da Silva: “a política transporta positividade e com positividade deve ser exercida. Da poesia para o filósofo, do filósofo para o povo. Do povo para o homem do povo: Lula da Silva”

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domingo, 28 de novembro de 2010

O Rio de Janeiro continua lindo?

Foto: Ana Helena Tavares
O Globo abriu manchete: “O Dia D da guerra ao tráfico”, onde sem temer o ridículo destacou a “semelhança simbólica com o desembarque das tropas aliadas na Normandia” na segunda guerra mundial (menos, família Marinho, menos!).

Por José Ribamar Bessa Freire (*)


(Do ‘correspondente de guerra’ do Diário do Amazonas no RJ) Suas pernas grossas e bem torneadas, reveladas por uma saia curta amarela, eram – como a gente dizia em Manaus - dois tocos de amarrar onça. Subiam e desciam tão celeremente que o calcanhar batia na bunda. Tinha medo. Ela era jovem e corria, ofegante, pela Av. Presidente Vargas no sentido contrário ao ônibus que pegava fogo. Densa cortina negra de fumaça manchava os céus. Cheiro forte de borracha queimada. Pra falar a verdade, essa foi a única cena em que estive de corpo presente. O resto, acompanhei, como todo mundo, pela televisão.

O Rio se transformou numa praça de guerra. Dizem que os traficantes pagaram, quase sempre a menores de idade, entre R$200,00 e R$400,00 por veículo queimado. Dessa forma, nos últimos dias, tocaram fogo em dezenas de carros, aqui e ali, nas ruas do Rio, num processo similar ao ocorrido no réveillon de 2010 em Paris, quando mais de 1.100 viaturas foram incendiadas. Aqui a escala foi menor, mas o suficiente para criar um clima de pânico na cidade. 
Embora distante da linha de tiro, acabei vendo um ônibus virar bola de fogo graças ao secretário de segurança José Mariano Beltrame e a um livro didático. Se não fossem eles, esse pífio ‘correspondente de guerra’ não sairia de casa e nada teria a contar. Saí. Conto o caso como o caso foi.
Moro em Niterói, trabalho em duas universidades no Rio. Cruzo diariamente a baía. Estava alarmado com as notícias divulgadas pelas emissoras de rádio e TV, complementadas por boatos que circulavam velozmente na internet, divulgados pelo Twitter e pelo SMS. “Vão explodir a ponte Rio-Niterói” – me escreve um aluno, acrescentando que bandidos – parece - haviam assaltado uma pedreira, de onde roubaram uma tonelada de dinamite. Ele avisou que não iria à Faculdade. 
“E eu? Vou ou não vou?” – pensei – assaltado pela dúvida, o que é melhor do que ser assaltado por um bandido. Era só um boato? Como saber? Todas as vezes que me encontro em situação similar, uma frase emerge lá do porão da memória, martela minha cabeça e decide por mim:
“O sentimento do dever me robustece”
Sentimento do dever
Essa frase constava num dos textos escolares que estudei nos anos 1950 no Colégio Aparecida, na minha longínqua infância em Manaus. Acho que foi pronunciada solenemente por algum personagem da história pátria, algum herói fabricado. Fazia parte do livro Pedrinho e seus amigos, cuja capa era ilustrada por três crianças - Pedrinho, Zezinho e Maria Clara - com o cachorro Veludo correndo, alegre e saltitante. 
A lembrança da frase (e do Veludo latindo) foi acompanhada pela entrevista do Beltrame na rádio. “Qual o conselho que o Sr. dá à população”? Ele respondeu: “manter a rotina”. Ora, minha rotina é dar aula. Se alguns alunos vencessem o medo, tinham que encontrar seu professor, lá, nas trincheiras do saber. Por isso, robustecido, saí de casa, consolado por uma ideia: se a ponte explodir comigo, o Batará manda erguer uma estátua com meu busto, diante do Diário, com a frase gravada em bronze:
“Ao Taquiprati, correspondente de guerra e mártir da educação”. Ou então: “Ao Taquiprati, morto, mas robustecido pelo sentimento do dever”. 
Na ida, o trânsito estava uma maravilha, não havia aquele inferno de sempre dos engarrafamentos quilométricos. Com medo, os donos das empresas haviam retirado de circulação diversas linhas, reduzindo a frota. Também muitas pessoas, que não estudaram no livro do Pedrinho, ficaram em casa. Um cínico insensível poderia dizer que está descoberta a fórmula para acabar com os congestionamentos no trânsito.
  
Na Universidade, me esperavam duas alunas, igualmente robustecidas pelo sentimento do dever. Numa turma de trinta alunos, elas eram, justamente, as únicas que não faltaram nenhuma aula. Justificaram a ausência dos colegas, alguns moradores da Penha e das proximidades do front da guerra. Nem precisava. Improvisamos, então, uma aula, ali, sentado na escadaria, na entrada do prédio. Discutimos, entre outras coisas, o impacto das novas tecnologias na cultura contemporânea e o papel da internet. 
Ali, na escadaria, soubemos que a reitora da UNIRIO havia decidido suspender as aulas. Escolas e universidades cancelaram provas, camelôs recolheram barracas, comerciantes fecharam suas lojas e grandes empresas - Petrobrás, Vivo, Furnas, Fio-Cruz - liberaram mais cedo seus funcionários. Foram cancelados ainda os ensaios das escolas de samba e suspensas as semifinais do Campeonato de Futsal. Quando o samba e o futebol reagem, é porque as tropas aliadas estão quase desembarcando na Normandia. 
Desembarque na Normandia 
As redes de TV mostravam o que estava acontecendo no outro lado da cidade, na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, onde a cobra fumava. As tropas aliadas depois de intensos combates com os traficantes chegaram ao alto da favela, deixando um rastro de destruição: carros incendiados, fios arrebentados, transformadores explodidos, manchas de sangue, marcas de balas nos muros, munição deflagrada espalhada pelo chão. Algumas dezenas de mortos, muitos presos.
A TV Globo colocou dois helicópteros – um Globocop trazido especialmente de São Paulo – e alterou sua grade de programação, cobrindo durante mais de seis horas ininterruptas a guerra entre o exército dos traficantes e as tropas aliadas. As rádios do Rio deixaram de transmitir A Voz do Brasil para acompanhar os fatos. 
A mídia foi unânime em saudar os seis blindados da Marinha – modelo usado no Vietnã - e a tropa de Fuzileiros Navais, com rostos pintados, que invadiram a Vila Cruzeiro, ao lado dos caveirões e dos Policiais do Batalhão de Operações Especiais (BOPE). A fuga de duzentos traficantes para o Morro do Alemão foi transmitida ao vivo. 
O Globo abriu manchete: “O Dia D da guerra ao tráfico”, onde sem temer o ridículo destacou a “semelhança simbólica com o desembarque das tropas aliadas na Normandia” na segunda guerra mundial (menos, família Marinho, menos!). Publicou ainda sugestão de um leitor para que o Brasil emprestasse de Israel um daqueles helicópteros que possuem bombardeio de precisão. Mas no final foi comedido: não exigiu o uso de submarinos e porta-aviões.   
O ministro da Defesa apareceu numa entrevista ao lado do governador Cabral, mas – que decepção! – Jobim não estava fantasiado com o uniforme militar camuflado que costuma usar nessas ocasiões. O poder de fogo dos bandidos foi invocado repetidas vezes: armas pesadas, granadas, coletes à prova de bala, radiotransmissores, carros e até 300 motocicletas apreendidas. Além de um batalhão motorizado, os traficantes tinham até uma “enfermaria” - um “hospital” segundo um telejornal que exibiu a prova: uma caixa de papelão com remédios apreendida pela polícia.
O desembarque na Normandia carioca repercutiu e ganhou as manchetes dos jornais do mundo inteiro. Se na época da ditadura militar a guerrilha urbana tivesse a metade do poder de fogo que a mídia diz que os traficantes têm, o lema seria: “criar um, dois, três Complexos do Alemão”. E Dilma Rousseff assumiria a presidência com trinta anos de antecipação. 
Quem tem pescoço francês, tem medo. Esse correspondente de guerra, com medo, admite o fracasso em sua primeira experiência nesse tipo de cobertura. Lamenta também não poder compartilhar o entusiasmo por uma guerra apresentada pela mídia como a luta entre o bem e o mal. Se tudo isso acontecesse em uma aldeia indígena, a mídia falaria de barbárie, de atraso, de selvageria.
Deixo, portanto, com os leitores a pergunta formulada pelo sociólogo José Cláudio Alves, da UFRRJ, em um primoroso artigo: “Qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo? Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Quem está por trás da produção miditática? (...) Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos esquecemos que sua única finalidade é a hegemonia do mercado do crime no Rio de Janeiro?”.
Não consigo esquecer a cara de medo da menina de saia amarela que corria pela Presidente Vargas. Ela tinha um sinal parecido ao da atriz Leandra Leal. Fico com a incômoda sensação de que o sentimento do dever não me robusteceu. O Rio de Janeiro continua lindo? Alô, alô, Complexo do Alemão! Aquele abraço!

*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blogTaqui pra ti e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.

=> DA EDITORA:  Nunca li o livro "Pedrinho e seus amigos", citado pelo Bessa, mas fiz leituras semelhantes... Não fui dar aulas - já há algum tempo desconfio de que eu não tenha nascido pra isso -, mas ontem, sábado, 27/11/2010, saí de casa, com uma máquina fotográfica na mão e uma cisma na cabeça: sim, apesar de tudo, o Rio de Janeiro continua lindo. Em busca de provar isto, tirei mais de duas dezenas de fotos, dentre elas a que escolhi para ilustrar este artigo. Nuvens ciceroneavam o Cristo, como que querendo poupá-lo. Mas nada lhe tira sua majestade nem tampouco a beleza desta cidade. Quem quiser ver as outras fotos - e tirar suas próprias conclusões - clique aqui.
Ana Helena Tavares

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