Por Renato Prata Biar (*)
Numa palestra proferida pelo psicanalista Jorge Forbes para o programa Invenção do Contemporâneo, e que tinha como tema a questão da globalização, o psicanalista de linha lacaniana afirmou que a grande questão para o homem e a mulher do século XXI é o fato de hoje nós termos inúmeras opções no que diz respeito à escolha de uma carreira, de uma profissão. Segundo Forbes, além da gama de possibilidades no século passado ser bem menor, havia também uma convicção e uma certeza maior das pessoas na hora de escolher sua profissão e, consequentemente, sua carreira como profissional. Ainda segundo o psicanalista, se antes nós escolhíamos uma alternativa, hoje, quando se faz essa escolha tendo, por exemplo, dez opções, a sensação que temos não é a de ter feito uma escolha, mas de ter perdido as outras nove que existiam. O homem, portanto, diante de tamanha quantidade e diversidade nas opções, simplesmente fica perdido e não sabe o que fazer da vida. E é a partir desse ponto que começo a traçar minhas divergências com esse psicanalista que é, sem dúvida, um dos maiores especialistas da psicanálise lacaniana, no Brasil.
Para começar, se analisarmos a questão do desemprego estrutural (aquele que ocorre devido à extinção de determinados postos de trabalho: trocador de ônibus, os bancários, que sofreram uma redução de cerca de 50% do efetivo da categoria, etc.) podemos constatar facilmente que os postos que foram extintos, são muito mais numerosos do que os postos de trabalho que foram criados nesse mesmo período (da década de 1990 até os dias atuais). Portanto, se existe nas pessoas de hoje essa insegurança e essa sensação de não saber o que fazer e o que escolher para suas vidas, o motivo certamente não é o maior número de alternativas existentes, mas, pelo contrário, a extrema redução dessas alternativas. O que parece é que para ter alcançado uma conclusão como essa, Jorge Forbes não levou e não leva em consideração a “sutil” diferença entre as classes sociais. Sua conclusão só pode ser entendida se acreditarmos que as inúmeras possibilidades de se escolher uma carreira ou uma profissão sejam exatamente iguais tanto para aqueles que estão na base da pirâmide social (a classe menos abastada) quanto para aqueles que estão no topo dessa pirâmide (a classe mais abastada, mais rica); algo completamente inaceitável e absurdo.
Outro ponto que o psicanalista lacaniano parece não enxergar (e o pior cego é aquele que não quer ver) é o fato de que a globalização privilegia apenas dois “sujeitos” ilustres: o capital e a informação (esta, principalmente, pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação). Para quem já leu o Manifesto Comunista, de K. Marx, esse tipo de globalização não é nenhuma novidade. O barbudo de Trier já havia escrito, em 1848, que o capital é apátrida. Ou seja, ele não tem pátria e irá buscar o lucro maior onde quer que ele esteja. Para constatar isso, basta observarmos a quantidade de grandes empresas dos países mais ricos (Estados Unidos e vários países europeus) que transferiram o seu parque industrial para a China, a Índia e diversos países latinos americanos na busca por mão-de-obra mais barata, de uma classe trabalhadora pulverizada e de sindicatos fracos e com uma legislação trabalhista ineficiente e, em muitos casos, praticamente inexistente. Será que os milhões de trabalhadores que estão submetidos aos subempregos e às condições de trabalho escravo ou semi-escravo também estão em crise existencial, no que diz respeito a decidir que carreiras irão escolher para suas miseráveis vidas? E quando digo que essa globalização é uma globalização do capital, pois, esse, sim, tem trânsito livre em qualquer lugar do mundo, quero lembrar a onda de xenofobia que cresce a cada dia nos países mais ricos: deportando trabalhadores imigrantes sem dar-lhes direito algum, culpando-os por suas crises econômicas, criando leis para criminalizá-los e tantas outras atrocidades cometidas contra seres humanos que só querem trabalhar e ganhar a vida de forma honesta. Gostaria que o psicanalista opinasse sobre essas questões.
Outro ponto de divergência com Forbes refere-se à própria classe média/alta que ele tanto prioriza nas suas análises. A esse respeito, o que parece é que, mesmo essas pessoas que têm condições e estrutura para escolher sem pressa ou desespero a profissão e a carreira que querem abraçar, estão submetidas a uma pressão que, essa, sim, parece ser uma característica do final do séc. XX e que adentrou pelo séc. XXI: escolher uma atividade que, antes de qualquer coisa, ofereça a oportunidade de grandes ganhos financeiros. Em outras palavras: de ficar rico. Não é que não existam mais honradas e dignas profissões a serem seguidas, mas o problema é que as pessoas acreditam, religiosamente, na existência metafísica do mercado com a sua mão invisível que tudo controla. Com isso, se dedicam exclusivamente a uma preparação que visa uma formação que lhes transforme cada vez mais numa mera mercadoria. Porém, esse homem reificado (transformado em coisa) não é mais aquele que busca se aperfeiçoar na sua profissão para garantir o seu emprego. Mas é aquele que agora deseja ser uma mercadoria polivalente, pois o seu desejo é estar preparado para as mais diversas e diferentes oportunidades que o Deus Mercado irá lhe oferecer. Não importa mais o que se tenha que fazer desde que isso tenha uma grande probabilidade de lhe proporcionar excelentes e exorbitantes lucros. E, o que é mais grave, as pessoas são levadas a acreditar que é somente através do seu crescimento e sucesso financeiro que conseguirão a admiração e o respeito da grande maioria da sociedade. Terão, finalmente, o reconhecimento e a visibilidade tão desejados. Como dizia o próprio Lacan, “o maior desejo do sujeito é ser o objeto do desejo do outro. O sujeito deseja ser desejado.”
Portanto, se vivemos numa sociedade que é ensinada e que ao mesmo tempo ensina que para ser desejado o que importa é Ter e não Ser, os meios pelos quais se busca a obtenção daquilo que realmente se valoriza na sociedade (nesse caso, as coisas materiais e, mais especificamente, o dinheiro) não só já não importam mais, como também já estão mais do que justificados. Como mais uma vez nos alertou K. Marx (Manuscritos Econômico-filosóficos):
“O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas – de seu possuidor – qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força repulsiva, é anulada pelo dinheiro. Eu sou – segundo minha individualidade – coxo, mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; não sou, portanto, coxo; sou um ser humano detestável, sem honra, sem escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, logo, é bom também o seu possuidor; o dinheiro me isenta do trabalho de ser desonesto, sou, portanto, presumido honesto; sou tedioso, mas o dinheiro é o espírito real de todas as coisas, como poderia o seu possuidor ser tedioso? Além disso, ele pode comprar para si as pessoas ricas de espírito, e quem tem o poder sobre os ricos de espírito não é ele mais rico de espírito do que o rico de espírito? Eu, que por intermédio do dinheiro consigo que o coração humano deseja, não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu dinheiro não transforma, portanto, todas as minhas incapacidades no seu contrário?”
Para concluir, se é o homem que produz as ciências, as artes e o conhecimento; se é ele que transforma a natureza para satisfazer das suas necessidades mais básicas até as mais complexas e supérfluas, das mais banais até as mais interessantes e maravilhosas, então somente o homem será capaz de superar essa ordem das coisas que ele próprio criou e que, de maneira alienada e equivocada, pensa estar submetido e impotente diante dela. Se a história é algo que construímos através da nossa atividade e da nossa práxis, na nossa interação e na relação com o outro, então que tomemos de vez essas rédeas em nossas mãos para que possamos construir algo que transforme a nossa angústia diante da vida e da finitude, em algo que nos dê um sentimento de que, mesmo com todas as adversidades e sofrimentos, valeu apena ter passado por aqui.
*Renato Prata Biar é historiador, pós-graduado em filosofia. Mora no Rio de Janeiro e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.
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