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sábado, 31 de julho de 2010

A filosofia do pão francês (ou as generalizações horrorizantes de Índio da Costa)


A filosofia do pão francês

Por José Ribamar Bessa Freire (*)


Nos anos 1980, quando cursava eu a pós-graduação na França, por lá passou, turistando, uma amiga brasileira, cujo nome aqui omito com a devida permissão do leitor, porque a personagem ainda vive e não convém expô-la. Conto o milagre, mas não dou o nome da santa que antes mesmo de completar 48 horas em Paris, em companhia do maridão, já havia fotografado a alma dos franceses e emitido um juízo inapelável, contundente e definitivo sobre eles:

- Grossos! Os franceses são grossos! Grossos e boçais!

De onde tirou tal conclusão? De um laboratório de observação - uma padaria situada na esquina da Rue Falguière com o Boulevard Pasteur - onde, um dia após seu desembarque, tentou comprar – acreditem! – um pão francês. Descobriu, então, perplexa, que “não tem pão francês na França, só no Brasil”. Ou dito de outra forma: “na França, todo pão é francês”. O padeiro – segundo narrou - só faltou cuspir nela e por pouco não lhe chuta a canela. Havia testemunhas: o marido, que confirmou tudo e reforçou a generalização: - Os franceses são todos uns cavalos.

Contemporizei, sugerindo que talvez o casal não tivesse entendido direito as palavras do padeiro. Mas minha amiga Norinês (ih, meu Deus, sem querer revelei seu nome; agora é tarde, Norinês é morta!) reagiu, indignada, exibindo seu diploma da Aliança Francesa no Rio de Janeiro, onde durante oito anos aprendera a pedir informações, fazer compras, comer, conversar sobre família e trabalho, falar abobrinhas. Ofendida, dizia: - “A língua, eu domino. Entendo tudo. Não! Nada de problema lingüístico! Foi grosseria mesmo”.

Os salamaleques
Convém analisar o livro em que nossa heroína estudou francês. Havia dois personagens - Monsieur e Madame Thibault – que visitavam um jardim zoológico, explicando que “le lion est le roi des animaux”, ou um circo cheio de anões e gigantes: - “Le géant est un homme três grand qui a souvent plus de deux mètres de hauteur”. O livro dava até dicas para enfrentar o frio parisiense. Madame Thibault manda sua filha vestir o casaco: - Cathèrine, prends ton manteau! A menina resiste: - Mon manteau? Pourquoi? A mãe justifica: - Parce qu´il fait froid aujourd´hui.

Acontece que naquele forte calor de julho, aquelas frases pré-fabricadas sobre circo, zoológico e meteorologia eram inúteis. O casal não precisava de circo, mas de pão. Parece, no entanto, que Monsieur e Madame Thibault se esqueceram de ensinar a Norinês como devia se comportar numa padaria. “Não precisa – dizia ela - uma padaria é uma padaria em qualquer lugar do mundo. Não tem mistério. Você entra e pede uma bisnaga ou um pão francês, paga e se manda”.

Foi ai, então, que entendi. O problema não era de tradução da língua, mas de tradução da cultura. Monsieur Thibault não dera a Norinês o arsenal de salamaleques necessário para comprar uma simples baguete. O brasileiro é mais informal, entra na padaria e diz sem problemas: - “Seu menino, me dê uma bisnaga”. Já o francês não, é cheio de trique-trique. O cara entra e – primeiro salamaleque – cumprimenta todos os fregueses presentes:

- Bonjour messieurs et dames!

Antes de pedir o pão, investe no segundo salamaleque, saudando, dessa vez, o balconista. Na terceira mesura, pede a ele, por favor – s´il vous plaît - aquilo que quer comprar. O quarto salamaleque, ao receber o pão, é um agradecimento. Um merci beaucoup não faz mal a ninguém. O cidadão já cumprimentou, já comprou, já agradeceu, agora pode sair? Negativo. Ninguém sai impunemente sem se despedir do vendedor e ai vem o quinto rapapé: - Au revoir, monsieur! Ah, agora sim, o consumidor pode se pirulitar? Necas de pitibiribas! É preciso também se despedir dos fregueses ali presentes. Sexto salamaleque.

Norinês ignorou que devia fazer um enorme investimento em salamaleques. Já chegou ordenando. O padeiro viu aquilo e achou que ela é que era muito grossa e indelicada. Por isso, lhe disse: “Madame, nous n´avons pas gardé les cochons ensemble”, que é uma forma de questionar:Ei, minha senhora, que intimidades são essas? Nós nunca trabalhamos juntos num chiqueiro”. Ela fez um escândalo: “Ele me chamou de porca”.

Índio da Costa
É muito comum, mas deplorável, a construção de imagens estereotipadas sobre um povo, a partir de uma observação apressada e unilateral do comportamento de um indivíduo, relacionado a um pequeno conflito cotidiano. Nossos “hermanos” argentinos que o digam! Freqüentemente são vítimas (e ao mesmo tempo algozes) dessa postura etnocêntrica.

Supondo que o padeiro tenha sido efetivamente um cavalo – o que não foi o caso – a única conclusão que ela podia chegar era a de que o padeiro do Boulevard Pasteur era bruto. Seria incorreto concluir que “os padeiros do bairro de Montparnasse são grossos” ou que “os padeiros franceses são estúpidos” e muito mais ainda generalizar para 60 milhões de franceses.
Para desfazer a má impressão, convidei o casal 20 a conhecer uns amigos franceses, que são afáveis e gentis. Se os dois conhecessem Pascal Foucher, Juliette Moulin, Jean-Claude Frébourg e Daniel Patridgeon, que são umas flores de pessoas, se dariam conta do engano. Mas Norinês foi irredutível, recusou, não queria mudar aquela primeira impressão construída a partir de generalizações incorretas e inapropriadas realizadas por caminhos tortuosos.

Eis o que queria dizer... o que é mesmo que eu queria dizer? Meu amigo Thiago de Mello tem razão em avaliar que quando narro, em vez de descer pelo tronco, me perco pelos galhos. Ah, lembrei! Eis o que queria dizer: nessa campanha eleitoral, a filosofia do pão francês está correndo solta.

Juro que até tenho uma simpatia pelo José Serra, que foi um bom ministro da saúde, quero ver minha mãe mortinha no inferno, quero que santa Luzia me cegue se estiver mentindo. Mas ele sujou sua biografia, caindo no colo da direitona cavernária.

Confesso que estou horrorizado com a generalização feita pelo vice do Serra, Índio da Costa (DEM, vixe, vixe!) que em tom de denúncia “descobriu” que o PT mantém relações intimas com o narco-tráfico e as FARC da Colômbia, colocando tudo no mesmo saco. Serra assinou embaixo. É a filosofia do pão francês da Norinês Cabral (ih, me escapou o sobrenome, agora todo mundo sabe que a heroína é neta do velho Oder). Imaginem se Serra ganha e morre – toc, toc! - vamos ser governados por esse paspalhão. Não era com esse Indio da Costa que Serra tinha de se aliar.

*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blogTaqui pra tie é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto, entretanto não gostei de ver o cartaz de tão belo filme mesclado com gente tão diferente das pessoas do filme.

Ana Helena Tavares disse...

hehe De fato, os atores do filme e sua bela história não mereciam isso, mas é só uma brincadeira com o título, caro "anônimo".

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