Assim matava a ditadura
"Eremias
era mau aluno,
treinava judô.
Sorriso moleque,
morreu em pedaços,
35 balaços."
("Formatura", CL)
era mau aluno,
treinava judô.
Sorriso moleque,
morreu em pedaços,
35 balaços."
("Formatura", CL)
Contatou-me um leitor que até hoje mora próximo do local onde, há 40 anos, meu amigo de infância, colega de escola e companheiro de armas Eremias Delizoicov, aos 18 anos de idade, foi executado pela repressão da ditadura militar com requintes de extrema bestialidade -- tanto o balearam que ficou irreconhecível!
Esse digno advogado Leonardo Amorim ressalva que nunca tomou partido na política brasileira, mas foi pessoalmente tocado pelos eventos presenciados, tanto que jamais os esqueceu. Graças a ele, posso oferecer-lhes mais detalhes sobre o que se passou naquele terrível 16 de outubro de 1969.
Quem leu meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005) deve lembrar-se bem do Eremias. Foi, p. ex., quem praticamente provocou uma guinada de 180º na minha vida de secundarista pacato e politicamente desinteressado, ao nela introduzir Maria das Graças Lima, que era sua colega de classe no nosso Colégio Estadual MMDC, no bairro paulistano da Mooca:
O papo deu início a uma amizade que eu, por timidez, não soube transformar em namoro.
A amizade me levou a seguir os passos de Maria e acompanhar os do Eremias no movimento estudantil, começando por algumas iniciativas de conscientização dos colegas no próprio MMDC, no segundo semestre de 1967.
Juntamente com o Eremias, fiz um curso apressado de marxismo na virada do ano. E juntos organizamos o movimento secundarista em toda a zona Leste paulistana ao longo de 1968.
Também entramos lado a lado na Vanguarda Popular Revolucionária. Aí as tarefas diferentes nos distanciaram: eu fui incumbido de estruturar serviços de Inteligência e ele designado para os grupos de ação.
Até que recebi a terrível notícia de sua morte, quando foi cercado por efetivos da PE da Vila Militar num sobrado da Vila Kosmos (RJ). Os militares acreditavam ter encurralado caça bem mais importante, o ex-sargento José Araújo da Nobrega - tanto que anunciaram primeiramente a morte do dito cujo, só retificando a informação um ou dois dias depois:
O receio de que o estado lastimável dos restos mortais ficasse registrado numa autópsia deve ter sido o motivo da negativa dos militares em entregá-los ao pai do Eremias, o inconsolável sr. Jorge, chegando a ameaçá-lo de prisão, caso insistisse em reaver o corpo do filho!
Esse digno advogado Leonardo Amorim ressalva que nunca tomou partido na política brasileira, mas foi pessoalmente tocado pelos eventos presenciados, tanto que jamais os esqueceu. Graças a ele, posso oferecer-lhes mais detalhes sobre o que se passou naquele terrível 16 de outubro de 1969.
Quem leu meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005) deve lembrar-se bem do Eremias. Foi, p. ex., quem praticamente provocou uma guinada de 180º na minha vida de secundarista pacato e politicamente desinteressado, ao nela introduzir Maria das Graças Lima, que era sua colega de classe no nosso Colégio Estadual MMDC, no bairro paulistano da Mooca:
"...numa noite de maio de 1967, o Eremias vem lhe apresentar uma menina.
Os dois estudam na mesma escola desde o Primário. Haviam sido colegas de classe, depois o Eremias foi ficando para trás. Agora está na 4ª série ginasial, enquanto Lungaretti cursa o 2º Científico. Mas, continuam se vendo pelos corredores, enfrentando-se no futebol.
Fez também o papel de cavalaria americana num dia em que Lungaretti estava prestes a enfrentar um colega muito mais forte. De repente, o Eremias apareceu com dois primos e evitou a briga, salvando Lungaretti da surra anunciada. Este, para manter as aparências, não poderia agradecer, mas passou a tratar Eremias com mais consideração.
Atarracado, com o rosto redondo de descendente de eslavos, Eremias parece um Rod Steiger adolescente. Chega com aquele seu sorriso de sempre, meio franco e meio zombeteiro:
— Esta é a Maria das Graças, colega da minha classe, ela quer bater um papo com você".
Os dois estudam na mesma escola desde o Primário. Haviam sido colegas de classe, depois o Eremias foi ficando para trás. Agora está na 4ª série ginasial, enquanto Lungaretti cursa o 2º Científico. Mas, continuam se vendo pelos corredores, enfrentando-se no futebol.
Fez também o papel de cavalaria americana num dia em que Lungaretti estava prestes a enfrentar um colega muito mais forte. De repente, o Eremias apareceu com dois primos e evitou a briga, salvando Lungaretti da surra anunciada. Este, para manter as aparências, não poderia agradecer, mas passou a tratar Eremias com mais consideração.
Atarracado, com o rosto redondo de descendente de eslavos, Eremias parece um Rod Steiger adolescente. Chega com aquele seu sorriso de sempre, meio franco e meio zombeteiro:
— Esta é a Maria das Graças, colega da minha classe, ela quer bater um papo com você".
O papo deu início a uma amizade que eu, por timidez, não soube transformar em namoro.
A amizade me levou a seguir os passos de Maria e acompanhar os do Eremias no movimento estudantil, começando por algumas iniciativas de conscientização dos colegas no próprio MMDC, no segundo semestre de 1967.
Juntamente com o Eremias, fiz um curso apressado de marxismo na virada do ano. E juntos organizamos o movimento secundarista em toda a zona Leste paulistana ao longo de 1968.
Também entramos lado a lado na Vanguarda Popular Revolucionária. Aí as tarefas diferentes nos distanciaram: eu fui incumbido de estruturar serviços de Inteligência e ele designado para os grupos de ação.
Até que recebi a terrível notícia de sua morte, quando foi cercado por efetivos da PE da Vila Militar num sobrado da Vila Kosmos (RJ). Os militares acreditavam ter encurralado caça bem mais importante, o ex-sargento José Araújo da Nobrega - tanto que anunciaram primeiramente a morte do dito cujo, só retificando a informação um ou dois dias depois:
"Naquele aparelho viviam mesmo o Nóbrega e o Eremias. Quando a repressão fechou o cerco, o Eremias abriu fogo. O Nóbrega, que estava chegando a pé de uma missão, viu o alvoroço, desviou caminho e se pôs a salvo.
Eremias resistiu bravamente. Mas, quando atiraram gás lacrimogêneo, ele ficou sem ação por alguns instantes, tonto e sufocado. Foi quando os torturadores da PE da Vila Militar invadiram o sobrado.
O cabo Polvorelli, um monstruoso mulato de 140 quilos, lutador de judô, conseguiu enlaçar o pescoço do Eremias com uma gravata. Eremias se recuperou o suficiente para atirar no braço do cabo. Os outros militares, então, dispararam à vontade.
O cadáver ficou tão desfigurado com os 35 balaços recebidos que, num primeiro momento, a repressão acreditou tratar-se mesmo do Nóbrega".
Eremias resistiu bravamente. Mas, quando atiraram gás lacrimogêneo, ele ficou sem ação por alguns instantes, tonto e sufocado. Foi quando os torturadores da PE da Vila Militar invadiram o sobrado.
O cabo Polvorelli, um monstruoso mulato de 140 quilos, lutador de judô, conseguiu enlaçar o pescoço do Eremias com uma gravata. Eremias se recuperou o suficiente para atirar no braço do cabo. Os outros militares, então, dispararam à vontade.
O cadáver ficou tão desfigurado com os 35 balaços recebidos que, num primeiro momento, a repressão acreditou tratar-se mesmo do Nóbrega".
O receio de que o estado lastimável dos restos mortais ficasse registrado numa autópsia deve ter sido o motivo da negativa dos militares em entregá-los ao pai do Eremias, o inconsolável sr. Jorge, chegando a ameaçá-lo de prisão, caso insistisse em reaver o corpo do filho!
"NUM DOS QUARTOS, PEDAÇOS DE
CRÂNIO FICARAM GRUDADOS NA PAREDE"
CRÂNIO FICARAM GRUDADOS NA PAREDE"
Para minha surpresa, esse advogado conheceu meu blogue e, não encontrando outro meio para entrar em contato comigo, postou como comentário o seguinte relato do tiroteio:
Finalmente, o bom Leonardo Amorim indica um logradouro que deveria receber o nome de Eremias Delizoicov, jovem mártir deste país tão pouco reconhecido aos que defendem as causas justas:
"...em julho de 1969, com seis anos de idade, vim morar no bairro de Vila Kosmos (com 'K’ - a Kosmos Engenharia construiu o bairro numa antiga fazenda de Guilherme Guinle), e a rua onde ‘tombou’ Eremias Delizoicov chama-se Toropi e não Toroqui ou Tocopi, como dizem desinformados ‘historiadores’.
Aliás, no número 59 reside a minha amiga, Mariza, que em 1969 era muito jovem e o seu pai alugou a casa para os chamados ‘terroristas’ sem saber de quem se tratava, o grupo: ela e seu pai foram incomodados pelo serviço reservado das Forças Armadas, achando que tinham participação!
Lembro-me como se fosse hoje, o barulho dos tiros; os muros eram baixos e a casa 59 da rua Toropi era fronteiriça à minha, na rua Alecrim, aonde resido há 40 anos. A rua Toropi ficou cercada de viaturas do Exército, de ponta a ponta. Um grupo invadiu a casa pela rua de trás (Assurema), pulando o muro, enquanto outros seguiram pela frente.
Dias antes (ou horas antes? - não lembro!) a ‘nossa’ lavadeira (apelidada de Lola - que reside no morro do Juramento, desde aquela época), e que ainda está viva, viu um homem sem as unhas (sangrando nas mãos!) apontando para a casa, indicando o local, de dentro de um carro, agarrado por vários homens que o ameaçavam. Teria sido Carlos Minc?
É verdade que Lamarca esteve aqui, dias antes? Dizem, que sim! Mariza conta que num dos quartos, pedaços de crânio ficaram grudados na parede, provavelmente de quem morreu baleado no local (Eremias).
Lembro-me como se fosse hoje, também, o meu falecido pai mostrando à minha mãe o jornal Correio da Manhã com a foto de um dos quartos da casa, talvez aquele onde mataram Eremias, com várias placas de carro penduradas. Se não me engano, o cofre do governador Ademar de Barros foi recuperado no local”.
Aliás, no número 59 reside a minha amiga, Mariza, que em 1969 era muito jovem e o seu pai alugou a casa para os chamados ‘terroristas’ sem saber de quem se tratava, o grupo: ela e seu pai foram incomodados pelo serviço reservado das Forças Armadas, achando que tinham participação!
Lembro-me como se fosse hoje, o barulho dos tiros; os muros eram baixos e a casa 59 da rua Toropi era fronteiriça à minha, na rua Alecrim, aonde resido há 40 anos. A rua Toropi ficou cercada de viaturas do Exército, de ponta a ponta. Um grupo invadiu a casa pela rua de trás (Assurema), pulando o muro, enquanto outros seguiram pela frente.
Dias antes (ou horas antes? - não lembro!) a ‘nossa’ lavadeira (apelidada de Lola - que reside no morro do Juramento, desde aquela época), e que ainda está viva, viu um homem sem as unhas (sangrando nas mãos!) apontando para a casa, indicando o local, de dentro de um carro, agarrado por vários homens que o ameaçavam. Teria sido Carlos Minc?
É verdade que Lamarca esteve aqui, dias antes? Dizem, que sim! Mariza conta que num dos quartos, pedaços de crânio ficaram grudados na parede, provavelmente de quem morreu baleado no local (Eremias).
Lembro-me como se fosse hoje, também, o meu falecido pai mostrando à minha mãe o jornal Correio da Manhã com a foto de um dos quartos da casa, talvez aquele onde mataram Eremias, com várias placas de carro penduradas. Se não me engano, o cofre do governador Ademar de Barros foi recuperado no local”.
Finalmente, o bom Leonardo Amorim indica um logradouro que deveria receber o nome de Eremias Delizoicov, jovem mártir deste país tão pouco reconhecido aos que defendem as causas justas:
“Sim: eu me lembro do que vi e do que ouvi! Minha sugestão: no entrocamento entre a rua Toropi, Abagerú e Imbiaçá existe um largo, que pode vir a ser chamado Eremias Delizoicov. Quero ser convidado ao evento para homenagear aquele de quem por 40 anos ficava imaginando o nome”.
Obs.: artigo de 09/08/2009, que resolvi divulgar novamente neste dia de efeméride negativa, por dar uma boa idéia de como eram abatidos os mártires brasileiros no auge do terrorismo de estado que assolou este país.
Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político. É paulistano, nascido e residente na capital paulista. Mantém o blog “Náufrago da Utopia”, é autor de livro homônimo sobre sua experiência durante a ditadura militar e colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”
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