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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Pólvora contra Direitos Humanos (Parte 2)



Por Carlos Alberto Lungarzo


Na Parte 1 nos referimos às Comissão de Verdade e Justiça (CVJ) procurando suas origens nos Tribunais contra crimes contra da humanidade, com os exemplos de Nuremberg (1945-47), da Grécia (1975), da Argentina (1984), e da África do Sul pós-apartheid. Apresentei depois o projeto de Anistia Internacional para o Brasil, tornado público após do anúncio do PNDH-3. Analisamos as manobras conceituais de grupos inimigos dos DH, aliados dos militares, tentando comparar os crimes atrozes das ditaduras, com as reações desesperadas das vítimas que tentaram defender-se como podiam. Essa divisão entre carrascos e vítimas conduz naturalmente a uma divisão entre repressores e resistentes. Mostra-se que crimes cometidos pela repressão não são anistiáveis, pelo menos em sua ampla maioria, e que a CVJ deve incluir a punição dos militares de maneira explícita e eficaz.


Síntese: Nesta segunda parte, aprofundamos os assuntos apresentados superficialmente na primeira. É necessário diferenciar entre os diversos tipos de crimes militares e a maneira de puni-los. Para que justiça não se torne vingança é necessário ter em conta os casos de arrependimento e a possibilidade de reconciliação. Entretanto, entre os quadros militares e policiais, na quase totalidade dos países onde houve crimes de lesa humanidade, desconhecem-se quase totalmente casos de arrependimento. Portanto, o objetivo das CVJ deve ser aplicar punições que mantenham a proteção sobre a sociedade, e contribuam a uma aprendizagem sobre o caráter negativo e desumano do militarismo. A sociedade deve estar alerta para repudiar as negociações e as barganhas em torno aos DH, bem como seu uso como moeda de troca no clientelismo eleitoral.



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5. Crimes Militares e Penas


A perversidade de igualar os eventuais crimes cometidos por resistentes contra a opressão (crimes políticos) com os crimes contra a humanidade, levou à Comunidade de DH de vários países a desiguais confrontos com gangues militares e policiais, magistrados subservientes e políticos corruptos. É por isso que o conceito de crime militar deve ser claramente definido. Em princípio, os crimes militares são aqueles que executam as forças armadas organizadas (oficiais ou paralelas), fazendo abuso de poder, garantindo auto-impunidade, e infringido sofrimentos aos “inimigos”, como parte do objetivo geral.



Tipos de Crimes


Um delito é uma violação de uma lei nacional, local ou internacional. O delito é considerado uma infração, quando, de acordo com o critério aceito na sociedade em que foi legislado, seu descumprimento não prejudica gravemente ninguém.


Já um crime é um delito que não pode ser ignorado e requer uma ação punitiva sobre o ator. O não pagamento de um tributo é uma infração, enquanto um assalto com armas é um crime.


Obviamente, estas divisões são arbitrárias e objetivam punir com maior força os delitos que prejudicam as classes mais altas. Assim, a sonegação de grandes tributos por uma empresa pode ser punida por uma multa apenas e, às vezes, até pode ser anistiada, como aconteceu várias vezes no Brasil com ruralistas e empreiteiros. O furto de um xampu mandou uma mulher carente ao xadrez por dois anos, onde foi torturada e perdeu um olho, tudo isso com o consenso do tribunal de São Paulo, conhecido por sua conivência com violadores dos Direitos Humanos, seu revanchismo e seu espírito inquisitorial.


Os crimes são qualificados como comuns, quando são executados (pelo menos em aparência) para a satisfação do lucro pessoal ou de grupos, ou com qualquer finalidade considerada “egoísta”. Apesar de sua subjetividade e nebulosidade, a idéia de crime comum serve como uma primeira aproximação para entender o que é um crime político e um crime contra a humanidade.


Um crime político é um ato que o sistema dominante qualifica como “crime” porque viola as leis que esse próprio sistema tem estabelecido para proteger seus membros. O mais típico “delito” político encontrado na história é a rebelião contra a tirania.


Apesar de que o termo sofreu algumas mudanças, esse conceito se reforçou depois da Segunda Guerra Mundial, quando era impossível ocultar que a rebelião contra a tirania era imprescindível para a dignidade das sociedades. Não teria sido possível ocultar, em 1945, apesar dos esforço das lideranças capitalistas para fazer-lo, que sem a rebelião dos povos invadidos pelos nazistas, estes não teriam sido derrotados. Apesar disso, os americanos impediram durante uma década a propaganda antinazista e até os filmes muito realistas sobre os crimes do 3º Reich. Eles não queriam alentar a consciência de que os povos que combateram o nazismo tinham o direito de fazer-lo. Queriam apresentar a derrota do como um mérito dos “bravos” militares aliados.


Nessa época, teria sido motivo de encrenca qualificar de terroristas os holandeses, franceses, dinamarqueses, gregos e outros que atacaram por todos os meios possíveis a ocupação nazifascista em seus países, usando até explosivos e fazendo voar residências de soldados, centros de armazenamento e outros objetivos. Mas os aliados tampouco queriam apresentar esses atos como provas de heroísmo. Logo que o perigo nazista contra os aliados ficou debelado (por volta de 1947), as forças capitalistas se concentraram na perseguição dos comunistas.


Apesar disso, depois de um exemplo tão marcante como o genocídio nazifascista, não é possível duvidar de que os “crimes” políticos são aqueles que se cometem contra os opressores, e não os abusos que os opressores cometem contra suas vítimas. Ninguém que não fosse nazista aceitaria que as sabotagens dos “maquis” ou dos guerrilheiros noruegueses eram crimes do mesmo tipo que os de Hitler. Ninguém pediu abertamente anistia para os membros do primeiro escalão das SS, apesar de que nas Américas (Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia) vários magistrados e políticos se pronunciaram (a boca pequena) pela necessidade de esquecer os crimes do Terceiro Reich.


A diferença entre crime político e crime de estado, ou seja, aquele praticado pelo opressor aproveitando sua vantagem, não é exatamente a mesma que a diferença entre “esquerda” e “direita”. Quando movimentos de esquerda tomam o poder e se transformam em governo, eles podem cometer crimes de estado, como aconteceu com Stalin. Mais raramente, um movimento de direita pode não ser terrorista nem opressor, mas apenas um grupo que se sente oprimido pela classe dominante e abraça uma rebelião contra ela. Por exemplo, os integralistas brasileiros, típicos fascistas, não cometeram só atos de terrorismo. Às vezes cometeram crimes políticos incruentos, como revolta contra o outro setor fascista: o que respondia a Vargas.


Mas, vejamos mais de perto os crimes contra a Humanidade. Um crime produzido pelo opressor é um crime de estado, porque a agressão do estado é sistemática e, ao usar poderes institucionais, está dando aparência de legítimos a seus crimes. Um opressor transitório (por exemplo, alguém que mantém um refém para consumar um roubo) não é um criminoso de estado. Seu poder é volátil, não possui imunidade, e seu crime, mesmo que seja “hediondo”, está isolado, nunca poderá servir de base jurídica ao sistema.


Há crimes de estado de diverso tipo. O crime contra a humanidade ou de lesa humanidade (introduzido para referir-se às atrocidades nazistas) propõe exterminar seres humanos quaisquer e não inimigos personalizados. Essas vítimas são definidas com base num atributo arbitrário: nacionalidade, etnia, religião, lugar geográfico, etc. Também, os alvos costumam ser pessoas desconhecidas que são eliminadas para produzir terror e demonstrar poder. De fato, os crimes militares de lesa humanidade, podem ser dirigidos a qualquer que não seja do próprio grupo de genocidas. Basta que as vítimas satisfaçam a necessidade mórbida dos carrascos e seu sacrifício possa ser exibido como exemplo.


Um caso típico, que até horrorizou os nazistas, foi o do exército espanhol até 1940, cujos soldados arrancavam as cabeças de prisioneiros árabes e as colocavam nas pontas das baionetas como enfeites. Na Argentina, nos anos 70, isto era mais difícil de fazer, mas o exército e a policia jogavam de vez em quando cadáveres mutilados nas ruas do centro de Buenos Aires, a altas horas da noite, para avisar ao povo que eles continuavam atuando.


A regra de não atacar os próprios camaradas nem sempre foi cumprida. Em 1979, conheci um oficial argentino que estava escondido em São Paulo e esperava uma oportunidade para pedir asilo político no Brasil. Pertencia a um grupo de extermínio, que ia ser integralmente “varrido” tipo “queima de arquivo” por seus superiores.


A diferença do crime de lesa humanidade do crime comum é que aquele está animado apenas pela necessidade de destruir, e não possui nenhuma motivação concreta (lucro, defesa, ciúmes, inveja, etc.). Tampouco é ocasional, mas é sistemático. Não se comete assumindo riscos contra a lei, mas protegido por ela. Unifica o ódio, o espírito de destruição com a covardia. Esse crime pode estar movido pela banalidade da vida humana, na forma em que é entendida pelos militares, e pela necessidade de satisfazer seu sadismo. (Entretanto, as elites políticas e econômicas o aproveitam com finalidades mais estratégicas: por exemplo, impor um plano social, como aconteceu com o neoliberalismo.)


Para os ortodoxos de qualquer religião, destruir os hereges é um fim em si mesmo: o objetivo é reduzir seu número. Implica, portanto, um claro confronto com o valor e os direitos da humanidade. Para os nazistas, o objetivo era destruir outras etnias ou comunidades: judeus, ciganos, marxistas, homossexuais, etc.


É curioso que os que “descobriram” os crimes contra a Humanidade depois de 1945, não ousaram reconhecer que as forças armadas em geral praticaram crimes de lesa humanidade desde o começo da história, salvo no caso de forças irregulares puramente defensivas (guerrilhas, milícias, etc.)


De fato, qualquer exército organizado possui um alvo que chama “o inimigo”. O objetivo é destruir esse inimigo. Metas como a rapina, a dominação econômica, o saqueio, são próprios das elites que instrumentam esses exércitos e os estimulam em nome de valores abstratos, como patriotismo ou fé. Mas, para os militares profissionais não políticos, a destruição do inimigo é a finalidade que dá sentido a sua tarefa.


Não apenas o genocídio ou o racismo são crimes contra a humanidade, mas, também a tortura. Este é um crime contra a humanidade nem sempre é massivo. Quando um grupo de policiais extermina habitantes de favelas, como acontece frequentemente no Brasil, pratica crimes massivos contra a humanidade. Entretanto, um policial que mata uma pessoa isolada, seja por acaso, por ódio, por descontrole, comete um crime comum. A massividade parece parte de definição de “lesa humanidade” no caso de genocídio.


Mas a tortura aplicada por agentes do estado, também é um crime de lesa humanidade, mesmo quando sua aplicação seja individual. O objetivo da tortura não é aleatório: faz parte de uma política geral de infringir dor e impor terror. É mais do que um método cruel de dominar um inimigo: é um exercício contínuo da crueldade, e faz parte da filosofia de grande parte de forças policiais e militares, não como um recurso involuntário decorrente da chamada “luta em quente”, mas um plano para catalisar o sadismo dos algozes.



Crimes Militares e Policiais


Os crimes militares são aqueles cometidos pelas forças armadas em seu intuito de aniquilar o inimigo, ou impor a este o máximo de sofrimento. Um militar pode cometer crimes comuns, que não estão incluídos nos crimes militares/policiais. É o caso de um oficial que atira sem refletir sobre uma pessoa desarmada, ou um soldado que arremessa uma granada, sem importar-se se ela pode atingir civis. Entretanto, embora estes são crimes comuns, é importante ter em conta que eles são possíveis porque existe um cenário de crime ontra a humanidade que torna aceitáveis esses atos. De qualquer maneira, o militar que comete um crime comum não pode ser tratado igual que aquele que comete um crime de lesa humanidade.


Os crimes militares são crimes contra a Humanidade exercidos pelos membros das forças armadas em suas atividades oficiais. Crimes cometidos por jagunços, policiais, pistoleiros, matadores pagos são crimes contra a humanidade, mas não são crimes militares.


Os crimes que padeceram os perseguidos políticos do planeta e, em particular, os da América do Sul durante as ditaduras, são inicialmente, crimes de estado. Dentro desta categoria, são crimes de lesa humanidade, e especificamente são crimes militar-policíacos.


Eles não têm as mesmas finalidades que os crimes políticos nem que os comuns. A brutalidade que os move é incorporável com as dos outros crimes. Seu impacto destrutivo, sua legitimação pelo estado, sua capacidade de propagação não admitem comparações com qualquer outro.


Portanto, crimes militares e policiais não podem ser julgados com os mesmos critérios que os crimes comuns, pois não são comuns.


Nenhuma gangue, mesmo a mais cruel e sofisticada, pode produzir 30 mil a 35 mil mortos em poucos meses, como fez o exército argentino. Os crimes militares não podem ser anistiados: devem ser apurados, investigados e julgados sob princípios do direito humanitário e não do direito comum.


Embora seja verdade que os julgamentos de Nuremberg foram arbitrários por vários motivos (procura de vingança e não de justiça, alarde do poder do vencedor, leniência com os que não ameaçavam o poder aliado), há vários elementos daqueles tribunais que devem resgatar-se:


1.      O uso de leis e procedimentos especiais, não aplicáveis a crimes comuns.


2.      A constituição de cortes especificamente destinadas a estes delitos.


Entretanto, essas cortes específicas não devem ser, sob qualquer pretexto, militares.



Objetivos da Punição


Para perceber claramente a necessidade de memória e justiça (incluindo, dentro da justiça, a punição que for razoável aplicar) deve ter-se em conta qual é, no direito humanitário moderno, o sentido de uma punição.


Contrariamente ao princípio clássico da vingança social ou da purificação teológica pelo castigo, no direito humanitário a reparação do crime (chamada, por causa do hábito, “punição”) não visa produzir sofrimento no autor do crime. A reparação deve cumprir três princípios:


1.      A segurança da sociedade, mantendo o autor do crime afastado dela.


2.      A re-socialização do criminoso.


3.      A educação humanitária da sociedade, que deve aprender, quando à punição dos crimes de lesa humanidade, que o cidadão possui o direito de defender-se de novos crimes dessa natureza.


Atualmente, os países democráticos e desenvolvidos repudiam a pena de morte, com a exceção dos Estados Unidos e Japão. Aliás, em termos mais principistas, as execuções são aberrações do direito humanitário, que contribuem a exacerbar o sentimento de vingança o sadismo que possa existir nas sociedades. Não faz sentido perguntar-se “qual é o valor da vida dos genocidas”. Por exemplo, qual seria o motivo para defender a vida dos 10 maiores líderes das ditaduras latino-americanas argentina, aos quais se devem centenas de milhares de mortes e tormentos?


Se o problema fosse visto sob uma ótica transcendente, poderia argumentar-se que aquelas vidas foram dadas por Deus, e que, portanto, nenhum homem tem direito de extinguir-las. A “troca” dessas vidas pelos milhares de mortos sob condições de inacreditável sevícia, poderia ser rejeitada pelas correntes católicas com base no caráter anticristão da vingança ou da retribuição.


Na prática, a posição da Igreja Argentina não foi essa. Na década de 70, o Vigário Castrense Victorio Bonamin homenageou publicamente a torturadores e genocidas, por ter-se purificado no “Jordan do sangue”, numa referência nada sutil aos que já eram mais de 20 milhões de vítimas sangrentamente assassinadas. Dos quase 130 bispos, apenas quatro não compartilhavam este entusiasmo (Heysane, Nowak, De Nevares e Angelelli, que foi assassinado).


O que impede que a pena de morte seja usada como punição para os genocidas, não é certamente um problema de falta de reciprocidade (ou seja, “ninguém pode produzir aos militares, tanto dano como eles produziram a suas vítimas”). A pena de morte, como foi manifestado muitas vezes pelos militantes de Direitos Humanos, degrada a sociedade, e introduz um fator de crueldade e banalidade como existe atualmente em vários estados americanos, e existiu na Europa até antes da Segunda Guerra.


Por outro lado, filha da pena de morte, a prisão perpétua, que torna impossível o objetivo de “resgatar socialmente o criminoso”, também deve ser abandonada. Como regra geral, uma restauração em forma de punição dos genocidas não pode usar nenhum dos métodos desses próprios genocidas, já que isso colocaria a sociedade humanitária no mesmo nível moral que as gangues castrenses.


A pena deve ser a mínima possível que permita satisfazer as três condições de segurança da sociedade, redenção do criminoso, e não reiteração.


Entretanto, os tribunais e os processos devem ser diferentes dos clássicos. Os processos judiciais clássicos foram gerados para condenar apenas as pessoas indefesas. O sistema de defesa, o número de recursos, o comportamento dos advogados, embora variem de um país a outro, visam poder culpar apenas os membros das classes mais baixas, ou aqueles, de qualquer classe, que se rebelam contra a ordem estabelecida. É por isso, que a pesar de não ter encontrado a melhor solução, os julgadores de Nuremberg não puderam aplicar o processo penal clássico.


Com a justiça tradicional, nenhum dos chefes nazistas teria sido condenado. Por exemplo, não existia nenhuma lei em 1945 que condenasse o racismo e o genocídio. Os crimes de Guerra proibidos pelas convenções de La Haia incluíam especialmente duas infrações. Um era o uso de gases tóxicos sobre cidades e campos de batalha, mas não dentro de câmaras de gás, o qual ninguém tinha imaginado. O outro era o uso de balas de fragmentação, que os alemães não usaram. Se tivessem sido aplicadas as leis tradicionais, Hitler poderia ter sido capturado, mas deveria ter sido liberado imediatamente “por falta de mérito”, como reza a gíria dos bacharéis.



6. Arrependimento e Reconciliação


Segurança e Recuperação


O papel da punição como um método para garantir a segurança da sociedade é óbvio. Um esquema de terror como a ditadura Chilena, Brasileira, Argentina, Boliviana, como a operação Charlie no Caribe, como o nazismo e o fascismo, é muito mais difícil de recriar que uma organização de traficantes ou uma banda de ladrões de banco. Os mecanismos ideológicos, éticos, religiosos, e a logística embutida num projeto genocida só podem ser reconstruídos por meio de longos processos.


Isso mostra a necessidade, não apenas de tutelar os genocidas, mas de desarticular seus aparelhos. Isto é algo muito mais difícil e apenas se consegue, de vez em quanto, em situações especiais. Os aliados desmontaram apenas parte da estrutura nazista e também apenas uma parte do militarismo japonês, mas parece que eles não se reconstruíram da mesma forma.


Já na Itália, desde a anistia de Palmiro Togliatti nos anos 40, os fascistas encontraram maneiras para proteger os restos de seus aparatos, que foram protegidos, de maneira diversa, pela Igreja, a Democracia Cristã, a Máfia e os militares “democráticos” (filiados ao esquema da NATO). Apesar das contradições entre muitos deles (por exemplo, entre a Cosa Nostra de Palermo e os fascistas tradicionais), esses fatores preservaram a estrutura fascista como um capital político militar.. De fato, esse é o motivo pelo qual o neofascismo é ainda hoje muito forte.


Garantir a segurança social com a dissolução das Forças Armadas nas Américas só foi possível com sucesso claro em Costa Rica (nos anos 40) e em Panamá (em 1994). Haiti tentou a mesma saída que teria, pelo menos, amenizado sua situação de extremo sofrimento. Seu exército foi dissolvido, mas não adiantou nada, pois pouco depois foi invadido por tropas estrangeiras de “estabilização”.


Quanto à recuperação ou “redenção” do criminoso de lesa humanidade parece um projeto quase impossível. A Comissão Nacional de Desaparição de Pessoas da Argentina investigou, durante alguns meses, vários membros das forças repressivas de diverso escalão. Posteriormente, poucos deles foram processados e quase nenhum ficou preso, mas pelo menos o processo serviu para coletar informação. Nenhum dos investigadores lembra ter encontrado algum militar ou policial de qualquer patente que sentisse remorso pelos assassinatos de mulheres e crianças. A maioria achava natural e até honroso, e apenas lamentava que as coisas tivessem dado errado. Outros guardavam grande ódio e diziam que se ficavam livres repetiriam a dose, mas em maior escala. De fato, isso não aconteceu de maneira massiva, como antes, mas os crimes cometidos pela polícia argentina desde 1984 até hoje, contra cidadãos quaisquer, talvez superem os cometidos durante a ditadura.


Em alguns países, criminosos comuns, incluindo os atores de crimes pesados (como homicídio e latrocínio) se recuperam de maneira bastante rápida e completa. O destino do criminoso não é, em geral, uma vocação eleita, mas uma circunstância à qual são empurrados por situações sociais e afetivas adversas.


Não acontece assim com os criminosos de lesa humanidade. Torturadores e genocidas podem ter sido em seus começos determinados por causas externas, porém, isto é frequente apenas naqueles de menor nível social. Uma vez encaminhados no terrorismo de estado, recebem elogios, prêmios, promoções, parte do botim que os exércitos roubam de suas vítimas, e assim em diante. Para os quadros maiores, a vida se torna prazerosa, com festas organizadas por empresários, financistas e ruralistas que os admiram como seus defensores contra a canalha popular e democrática. Os militares são convencidos de ser salvadores da pátria, ainda quando eles próprios achem ridículas essas pieguices. São mundialmente aclamados por outros governos fascistas, recebem honras de estado, enriquecem.


Claro que todos eles sabem que fazem sofrer de maneira aberrante a outras pessoas, mas não se importam. A reação pode ter vários estilos, mas nunca a culpa: (1) Pode ser a sensação de banalidade (da que falava Hanna Arendt), muito comum no nazismo: o sofrimento daquela gente não vale nada. (2) Pode ser um sentimento de revanche e insegurança, como acontece com as tropas norte-americanas, que querem vingar seu país, ameaçado por terroristas. (3) Nos países católicos é mais comum o sadismo, um atributo comum a muitos: militares argentinos, chilenos, nicaragüenses, legionários espanhóis, colonialistas belgas, paraquedistas franceses na Argélia, policiais italianos e, comparando a muita maior distância, juízes da Inquisição.


É verdade que o sadismo tem formas mais simples de se manifestar, mas o componente místico ajuda a diminuir a sensação de vergonha. Psicólogos e sociólogos europeus que tiveram relativo acesso a criminosos de lesa humanidade, depois da guerra da Argélia e da ditadura de Somoza na Nicarágua, comprovaram que todos padeciam de transtornos sexuais: eram homófobos, pedófilos, misóginos e tinham problema para gozar naturalmente. Torturar mulheres com ferros introduzidos na vagina era um dos métodos que ajudava seu orgasmo. Esses relatos concordam muito bem com os narrados seis séculos antes pelos observadores dos martírios da inquisição. No Malleus Maleficarum há uma forma dissimulada de aconselhar a exploração da vagina e os seios das “bruxas” para encontrar “marcas do diabo”.


A Igreja estimulou essas perversões por diversas razões. A mais fácil explicação é que os místicos são doentes hebefrênicos, e que sua proximidade com o sexo os constrange. Uma máscara de crueldade, e uma idéia de que estão cumprindo um dever sagrado torna os crimes sexuais mais prazerosos. Portanto, o exercício da tortura e o genocídio rara vez produzem culpa ou remorso, embora se registrassem alguns casos na África do Sul. O criminoso de estado, quando fica sem suas vítimas (por exemplo, depois do fim de uma ditadura ou uma guerra) tenta nutrir-se de crimes comuns, de abusos sexuais em família, de violência contra amantes e prostitutas, atrocidades contra os próprios filhos e assim em diante. Este fato está bastante estudado; veja a excelente pesquisa:


http://tva.sagepub.com/cgi/content/abstract/7/2/93


O remorso pode aparecer em racistas independentes que cometeram assassinatos de negros, judeus, comunistas, etc., como parte de seu fanatismo e caíram numa espécie de letargo quando sua aceleração homicida diminuiu. (Como o caso do personagem de Edwar Norton em A Outra História Americana). Há vários exemplos disto. Mas esse remorso é quase inexistente nos profissionais do genocídio ou a tortura: jagunços, policiais, militares, mercenários, etc.


Entre os chefes nazistas, alguns dos quais não assumiram “fisicamente” atividades cruéis e sofriam de menor misticismo que os genocidas latino-americanos, espanhóis ou franceses, tampouco o remorso foi algo comum. Isto reforça a idéia de que os crimes de lesa humanidade tornam os autores irrecuperáveis.


Dos 24 acusados na primeira sessão de Nuremberg, apenas 4 manifestaram arrependimento: o chefe da juventude hitleriana, Baldur von Shirach, o governador de Varsóvia Hans Frank e seu vice, Arthur Seyss-Inquart, e Albert Speer, arquiteto amigo de Hitler a fabricante de armas. Observe que o perfil conhecido destes quatro é muito menos sinistro que o de Pinochet, Videla, Medici, Banzer e outros, e não parecem afastar-se do modelo de militar comum ou do civil militarizado, para todos os quais a vida alheia é um simples objeto. Estas pessoas não sofrem especial repulsa da sociedade, e raramente são vistos como “monstros”.




O Problema da Reconciliação


Um dos três objetivos da punição dos criminosos de lesa humanidade é a educação da sociedade para evitar a repetição. Em vários países, depois de acabado o período de terror de estado, as CVJ tentaram uma processo de reconciliação entre vítimas e carrascos, com o intuito de evitar o risco de uma nova onda de genocídio e tortura. A reconciliação pode parecer plausível, quando existem casos de arrependimento, e os “arrependidos” podem ser transformados em reparadores dos danos de suas vítimas.


O único caso onde esta proposta teve algum sucesso (que, por enquanto, é mínimo) foi na África do Sul, onde houve vários casos isolados de arrependimento. Alguns policiais tinham desenvolvido sua atividade repressiva durante o apartheid sob um clima de ódio externo tão sufocante, que uma minoria deles sentiu-se ofuscado ao extremo de não poder refletir sobre a gravidade de seus crimes. Em diversos noticiários e documentários se mostram alguns poucos casos da crise sofridas por aqueles racistas quando se confrontam com vítimas às quais deixaram aleijadas.


Outro caso onde a reconciliação pode produzir eventualmente alguns frutos é Ruanda, e por razões similares: o aspecto racial.


Com efeito, em outros países, como os da América Latina, o conflito foi entre civis democráticos e progressistas e a quase totalidade dos militares. Em termos atuais, o confronto é entre ex torturadores e genocidas e suas antigas vítimas.


Parece ilusório que as pessoas aceitem se reconciliar com aqueles que mataram seus pais, filhos, irmãos, etc. Por outro lado, qual seria o sentido? Por que João da Silva deveria sentir necessidade de reconciliar-se (ou seja, possuir uma relação amigável ou neutra) com o coronel José Garcia, que o torturou? Não é mais racional deixar a imagem do algoz marcada em sua mente como um inimigo do qual deverá lembrar-se em seu devido contexto pelo resto da vida? Isso não significa rancor nem ódio: é apenas valorizar as ações do inimigo em sua justa medida. Será que, tendo o mundo tantas pessoas, ele precisa ficar amigo ou, pelo menos, complacente, com aquele que foi seu algoz?


A única reconciliação possível e, além disso necessária, é a reconciliação entre grupos sociais que foram arrastados injustamente a um conflito, o qual acabou criando uma contradição entre conjuntos humanos que não possuem nenhum incompatibilidade própria. No caso de África do Sul: a quase totalidade da comunidade afrikaaner desenvolveu ódio e racismo que gerou, como defesa, a desconfiança da comunidade negra. Então, de maneira irracional, o conflito entre dominadores e dominados se tornou conflito entre brancos e negros.


Afro-descendentes com alto nível cultural, mesmo sabendo que o confronto não incluía massivamente todos os brancos, sentiam desconfiança por pessoas brancas. Durante uma reunião do Comitê de Resistência dos Povos de Ásia, África e América Latina, conheci a um de meus melhores amigos da época, um dirigente da Namíbia. Nosso primeiro diálogo foi muito depois de nos conhecermos e, segundo ele explicou, essa demora era por causa da desconfiança que ele tinha desenvolvido contra todo branco, incluídos os estrangeiros, e até os que tinham rótulo de esquerdistas e revolucionários.


Outro caso de conflito espúrio, que deve ser eliminado pela reconciliação, é o que existe entre povos que se tornaram inimigos por causa da guerra. Assim como o confronto entre etnias provém do racismo, o confronto entre nações provém do militarismo e o patriotismo. Este sentimento nacional é ainda mais absurdo que o racial, pois é criado de maneira sistemática para alimentar o ódio dos grupos militares dos países em luta.


Então, é necessária a reconciliação entre negros e brancos, e entre franceses e alemães, mas não é necessária nem benéfica, a reconciliação entre negros e racistas brancos, e entre humanistas franceses e nazistas alemães. Muito mais nociva ainda é a reconciliação direta, que alguns governos propõem cinicamente, entre vítimas e algozes.


Quando os militares argentinos, chilenos, brasileiros e outros pedem a suas vítimas ou seus familiares que esqueçam e comecem uma nova vida, o que estão exigindo, no fundo, é sua rendição incondicional. Eles querem que os povos voltem a baixar a cabeça para poder ser novamente abusados na próxima mareia golpista.


Na Argentina, acuados não pelos milhares de vítimas, mas pelo vergonhosa derrota na guerra, os militares estão mais calmos, mas no Brasil é evidente a empáfia com a qual desafiam a ordem constitucional e a contínua provocação contra os setores realmente democráticos da sociedade.


Pedir reconciliação às vítimas dos militares é desprezar a dor de suas vítimas, forjar uma unidade impossível entre lobos e cordeiros, e robustecer o poder dos assassinos e seus herdeiros (já que as Forças Armadas no Brasil se orgulham de ser as mesmas que praticaram os genocídios).


Esta política de negar justiça, que coloca o Brasil entre os últimos países dos que sofreram crimes militares (apenas antes de Honduras e El Salvador), só pode aumentar as tensões e produzir crises periódicas.


A única solução que cabe aos movimentos de DH (numa linha que está sendo proposta atualmente por Justiça Global e outros grupos) é exigir, através dos mecanismos internacionais, a formação de Comissões Independentes de Verdade e Justiça. Essas comissões podem (e devem) incluir operadores de direito, mas apenas os estritamente especializados em DH. Não deve repetir a CONADEP da Argentina, onde apenas 20% estava interessado em DH, e havia até 30% de membros que tinham colaborado com a ditadura. Menciono tantas vezes a Argentina porque esta foi um exemplo perfeito (até 2005) de como não deve atuar-se.


A CVJ deve incluir conselhos de vítimas e seus parentes, grupos de especialistas em todas as áreas da programação humanitária, incluindo psicologia, sociologia, antropologia, etc. Seu objetivo deve ser reconstruir a verdade e estabelecer as condições para julgar os responsáveis de crimes de lesa humanidade ainda vivos.


Os crimes devem ser punidos de acordo com um critério de equivalência com os crimes comuns, já que não dispomos de um código completo de crimes contra a Humanidade. Deve ficar claro que a Lei de Anistia não protege estes crimes, e, no caso em que existam indícios de que estes crimes também foram explicitamente protegidos, então cabe declarar aquela lei como iníqua e inexistente.


Alguém acharia razoável em nossa época que algumas pessoas pudessem ter escravos legalmente? Entretanto, se fosse respeitado o direito adquirido, os possuidores de escravos antes da Lei Áurea deveria ter doado os descendentes destes a seus herdeiros.


Portanto:


1.      A Lei de Anistia deve ser reformulada, eliminando dela os crimes contra a Humanidade.


2.      A Lei de Obediência Devida existente em outros países, e implícita no Brasil, deve ser considerada aberrante, e os executores subordinados de crimes devem ser punidos da mesma maneira que seus mandantes.


3.      Deve redigir-se um código de punição de crimes contra a humanidade que sirva de exemplo para ações futuras.


Finalmente, há um problema que não pode ser resolvido de imediato, porém, talvez seja resolvido em algumas décadas se começarmos a educar na civilidade as gerações jovens:


Nenhuma sociedade que mantenha a guerra e a violência como profissão legítima poderá atingir nunca a plenitude dos DH, seja capitalista, socialista ou qualquer outra coisa. Os países menores devem seguir o exemplo dos 42 pequenos países que têm dissolvidos os exércitos, e os medianos e maiores deverão avançar nessa linha.


Embora não existam países grandes desmilitarizados, é possível ver que os DH são mais observados nas sociedades onde os militares, independentemente de seu número, possuem um papel marginal, como na Suécia..


O pretexto de que os países precisam se defender é autocontraditório. Uma desmilitarização mundial acabaria com a necessidade de defesa, pois também acabaria com a possibilidade de ataque.


Isto talvez tome alguns séculos, mas se desejamos preservar a Humanidade, vale a pena. Outra solução é eliminar o problema deixando que a Humanidade se destrua, o que parece uma decisão pouco racional.


Carlos Alberto Lungarzo é professor e escritor, autor do livro "Os Cenários Invisíveis do Caso Battisti". Para fazer o download de um resumo do livro, disponibilizado pelo próprio autor, clique aqui. É membro da Anistia Internacional e colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?"

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