Foto: Cuducos http://panoptico.wordpress.com
"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.O bicho, meu Deus, era um homem."
("O bicho", Manuel Bandeira)
Carta a meu irmão Alcides
"Alcides Nascimento Lins, 22 anos, foi assassinado a tiros na madrugada do dia 6. O jovem, filho de uma ex-catadora de lixo, havia passado em primeiro lugar entre os alunos de escolas públicas no vestibular de 2007 da UFPE”, disseram os jornais. Ao que digo agora.
Eu também já fui como você, Alcides. Eu já fui igualzinho a você, menino pobre que nem sempre tinha o que comer. Esclareço, pior dizendo: depois da morte do meu pai, quase nunca tinha pra comer. Mas se tem uma coisa que me fazia igualzinho a você era o gosto pelos livros, pela leitura, pela palavra impressa, que eu lia como um crente abre a bíblia e crê na palavra de Deus. Eu também já fui como você, até no tipo físico, até na cor, até na forma da tua pele. É lógico, não fui igual a você na aprovação das duras provas do vestibular, a ponto de ser classificado em primeiro lugar. Isso não, eu jamais consegui, embora sonhasse em fazer igual a você, quando tinha quinze anos.
Lembro de um dos escândalos no bairro de Água Fria em 1966: o filho de um lixeiro havia passado no vestibular de engenharia. Miro, lembro bem. Ele era apontado como exemplo para nós, que já gostávamos de estudar com o mesmo amor com que jogávamos bola. Por isso, foi com uma impressão de coisa conhecida, familiar, que abri o jornal há três anos e soube que você havia passado no vestibular lá em cima, no primeiro lugar. Então eu me disse, há três anos: Alcides é meu igual, Alcides é o que eu sonhava ser. Esse irmão eu conheço.
E mais fui me identificando ao saber que você gostava de pensamentos como este: “A felicidade se conquista aos poucos. A felicidade é adquirida por cada pedra tirada do caminho”. Que coisa, não é, meu irmão? Eu também, quando era contínuo de A F Motta e Companhia Limitada, enquanto limpava o lixeiro escarrado pelo português dono da firma, ia escondido para os livros de autoajuda, que me consolavam com pensamentos assim: “você é aquilo que imagina ser”. Então o contínuo estufava o peito para aguentar até a noite, quando ia para o curso clássico no ginásio pernambucano. Assim como você acreditava na felicidade, eu também acreditava que a gente crescia e melhorava de vida só pela força do pensamento positivo.
A vida depois me ensinou que as coisas não se passavam exatamente dessa maneira. Entre o sonho e a realização, quanto trabalho, quanto suor, quanta coisa a gente tem que engolir, Alcides. Quanta desrespeito a gente mastiga, mastiga, engole inteiro e o corpo devolve em tumor que explode no corpo da gente, meu irmão. Por isso entendi quando você, sem a experiência destes meus 59 anos, encarou os delinquentes, não ouviu a sua mãe, que lhe gritava para entrar, entrar urgente na sua casinha que mais parece casa de pombo, só tem entrada, e você, “não”, parecia se dizer, “será que eles não veem que eu sou um jovem de futuro? Será...?”. E os marginais não viram, ou de raiva porque eles próprios não têm mais qualquer futuro, apagaram com o teu, meu irmão. Por isso não gostei das notícias que vieram depois, quando toda a imprensa disse que você morrera por engano. Que você morreu porque foi confundido com um consumidor de drogas. O que isso quer dizer, mano? Que se você fosse usuário, comprador de maconha, estava certo receber duas balas na cabeça? O que é isso? A tua morte acende e levanta uma revolta imensa na gente, porque o crime e a barbárie cortaram o esforço de civilização em um jovem pobre. Mas a tua morte também nos ensina que não existe execução certa, que não há morte boa para ser aplaudida. Entre o uso da droga e a decência, entre o consumo de drogas e o amor aos livros, às vezes não existe mais que uma casinha de diferença, assim como na tua vila de casinhas de pombo. Nenhuma morte é justa, Alcides, tu bem sabes, tu bem sabias quando criaste dificuldade para que o teu vizinho não fosse morto. E terminaste morrendo no lugar dele.
Mas a tua morte, por fim, deixa em todos nós a maior lição, Alcides. A lição é esta, meu irmão, meu igual: que mais vale a luta que a vitória. Você esteve no bom combate, Alcides. Você esteve na luta de reunir forças por acreditar que pelo teu trabalho e estudo poderias ajudar a tua mãe, os teus amigos, o teu povo. Filho de uma ex-catadora de lixo, recuperaste ao fim a dor da tua mãe para todos os jovens, até mesmo para os maduros de todo o Brasil..... Mais vale a luta que a vitória. Eu acho que aprendi, mano. Eu juro que, quando crescer, eu quero ser igualzinho a Alcides.
Urariano Mota é jornalista e escritor. Autor do livro "Soledad no Recife", recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do Cabo Anselmo, executada pela equipe de Fleury com o auxílio de Anselmo. Urariano é pernambucano, nascido em Água Fria e residente em Recife. É colunista do site "Direto da redação" e colaborador do blog "Quem tem medo do Lula?"
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