Paulo Francis, com um pouco de compreensão
"Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão."
(Brecht , "Aos que virão depois de nós")
Por Celso Lungaretti
Está em fase de prelançamento um novo documentário de Nelson Hoineff, autor da cinebiografia do Chacrinha, desta vez focalizando o mais influente jornalista brasileiro do final do século passado: o analista político e crítico de cultura Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis, que morreu no dia 4 de fevereiro de 1997, de enfarte, aos 66 anos de idade.
Os mais jovens, que não conheceram o Francis do Pasquim e da vibrante participação inicial na Folha de S. Paulo (quando esta ainda tinha como diretor de redação o inesquecível Cláudio Abramo, defenestrado pelos militares em 1977), guardam dele a imagem negativa, antipática, de sua última fase.
Eu não considero Francis um típico esquerdista que endireitou ao se tornar sexagenário, conforme a frase c lebre do presidente Lula.
Prefiro vê-lo como quem caiu numa armadilha da História, pois suas convicções arraigadas e um cenário enganador o induziram a um terrível erro de avaliação. E não sobreviveu tempo suficiente para cair na real e, talvez, corrigir seu rumo.
Para um melhor entendimento do que estou falando, vou evocar sua trajetória toda.
Ele estudou em colégios de jesuítas e beneditinos, cursando depois, por uns tempos, a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Trocou-a por uma pós-graduação em Literatura Dramática na Universidade de Columbia (Nova York), que também não concluiu.
Chegou a ser ator e diretor teatral, mas acabou no nicho tradicional dos que são melhores para escrever sobre suas paixões artísticas do que para personificá-las: a crítica, a partir de 1959, no Diário Carioca.
Paralelamente, colaborava com a revista Senhor (que mais tar de viria a editar) e escrevia sobre política no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.
Relatou, mais tarde, um episódio pitoresco do seu noviciado. Entregou uma crítica teatral toda pomposa, repleta de termos pernósticos, ao seu editor. Ao recebê-la de volta, viu um grosso traço vermelho circundando a expressão “via de regra”. E o comentário: “Via de regra é a vagina”.
[Para os jovens que desconhecem o linguajar de outrora, esclareço que “regras” era um eufemismo para menstruação. E, claro, a palavra usada para designar o órgão genital feminino foi a chula, não esta...]
Francis disse que essa foi a primeira e única lição aproveitável de jornalismo que recebeu: escrever com simplicidade e clareza, em vez de pavonear-se com exibições desnecessárias de erudição.
Também comentou que tudo que há para se aprender de jornalismo, aprende-se em 15 dias numa redação. Daí sua avaliaç ão de que o fundamental para o exercício dessa profissão é uma formação cultural sólida, humanística e universalizante.
Ou seja, jornalismo tem tudo a ver com história, sociologia, psicologia, antropologia, filosofia, política, economia, literatura. Isto, sim, é que deveria ser priorizado na formação de um jornalista, segundo Francis.
[E assim o lecionavam, p. ex., na Escola de Comunicações e Artes da USP quando a cursei, entre as décadas de 1970 e 1980. Os dois primeiros anos eram voltados para a formação geral e só os dois últimos para a formação específica - a proporção de 3 x 1 seria mais apropriada ainda. Depois, tragicamente, sobreveio a capitulação diante do capitalismo pós-industrial, que execra o pensamento crítico e reduz o ensino à mera capacitação profissional.]
NA TRINCHEIRA DAS PALAVRAS
Embora não deixasse de registrar os erros e limitações das esquerdas brasileiras, por ele tidas como muito distantes da grandeza histórica e intelectual do seu ídolo de então – Trotsky, o teórico da revolução permanente e mártir da oposição de esquerda ao stalinismo –, Francis considerava que a prioridade era combater as forças de direita.
Foi o que fez no conturbado período da renúncia de Jânio Quadros, da tentativa de golpe para impedir a posse do vice-presidente eleito e do ziguezagueante governo de João Goulart.
Não desistiu depois do golpe militar. No Correio da Manhã, na Tribuna da Imprensa e na revista Realidade, continuou manifestando seu inconformismo com o país da ordem unida.
O lançamento do semanário O Pasquim, em junho de 1969, lhe deu projeção nacional. A Senhor e a Realidade já o haviam tornado conhecido em outros estados, mas num circulo restrito de intelectuais e pessoas sofisticadas. O Pasquim sensibilizou o público jovem, atingindo tiragens mirabolantes para um veículo alternativo.
E o Francis era o guru da turma em todos os assuntos referentes à política nacional e internacional, bem como à visão de esquerda da cultura. Com seus conhecimentos vastíssimos, dominava qualquer discussão.
Leitor assíduo de um sem-número de publicações estrangeiras, tinha sempre algo novo a dizer sobre a Guerra do Vietnã, um dos grandes temas da época.
Furando toda a grande imprensa, Francis, n'O Pasquim, foi o primeiro a informar os leitores brasileiros sobre o massacre de My Lai, que fez crescer em muito o repúdio mundial à intervenção estadunidense.
Disponibilizava as informações que a mídi a, por ideologia, covardia ou incompetência, sonegava do seu público.
Era também um crítico implacável da postura israelense de impor sua vontade pela força no Oriente Médio, o que lhe acarretava acusações rasteiras de que isso se deveria à sua ascendência alemã.
E, sendo um dos opositores mais contundentes do reacionarismo dos EUA, também não poupava a URSS, que colocava praticamente no mesmo plano, como grande potência que priorizava sempre seus interesses (e não os da revolução). Isso só fazia aumentar o seu prestígio aos olhos de uma geração que se decepcionara terrivelmente com o esmagamento da Primavera de Praga.
Cansado de ser preso pela ditadura, mudou em 1971 para Nova York, de onde mandava seus textos para o próprio Pasquim, a Tribuna da Imprensa, a revista Status e a Folha de S. Paulo (à qual chegou pelas mãos do diretor de redação Cláud io Abramo, também de formação trotskista).
Continuava, basicamente, um homem de esquerda, mas travava polêmicas azedas com quem ele considerava “esquerdistas de salão”, como a feminista Irede Cardoso. [Ela sofreu um dos maiores massacres intelectuais a que já assisti.]
SOB OS HOLOFOTES GLOBAIS
Paulo Francis, como muitos outros intelectuais de sua geração, foi perdendo o pique à medida que a ditadura ia deixando de exibir suas garras. Seu talento sobreviveu à ditadura, mas definhou na praia da redemocratização.
A partir de seu posto de observação privilegiado, captou bem a tendência desestatizante do final do século passado.
E foi quando toda sua história de opositor ferrenho da estatização compulsória e autoritária que caracterizaram o stalinismo fê-lo cometer um desatino: ajudou entusiasticamente a impulsionar a desestatização de Thatcher e Reagan, com seus escritos em O Estado de S. Paulo e suas participações no jornalismo da Rede Globo, bem como no programa de TV a cabo Manhattan Connection.
Se estava certo quanto à falta de pujança da economia soviética e o parasitismo das estatais brasileiras, não percebeu que o mu ndo engendrado pela globalização viria a ser uma versão mais desumanizada ainda do capitalismo selvagem.
O oásis que vislumbrou era ilusório. Todos aqueles avanços científicos e tecnológicos que estavam ocorrendo simultaneamente (informática, biotecnologia, engenharia genética, novos materiais e processos) pareciam mesmo augurar um futuro melhor para a humanidade... mas desembocaram, isto sim, numa forma mais avançada de dominação, como Marcuse previra. A ciência e a tecnologia ajudando a perpetuar a desigualdade social, as injustiças mais aberrantes e o embotamento do senso crítico.
Só que não era tão fácil adivinhar-se tal evolução naquele instante de enorme otimismo e euforia, assim como poucos apostariam que o milagre brasileiro de Delfim e Médici tivesse fôlego tão curto.
A intuição de Francis o traiu quando mais precisava dela, para evitar a nódoa final numa biografia impecável.
Acabou como um daqueles medalhões midiáticos que antes ridicularizava, aclamado mais por ter se tornado celebridade do sistema do que pela real qualidade do seu trabalho – como suas incursões pela literatura, em que a racionalidade e a mordacidade excessivas deixam tudo com um jeitão artificial, de tramas concebidas mecanicamente para demonstrar teses, ridicularizando comportamentos e desafetos.
Morreu na hora certa, antes que o admirável mundo novo erguido sobre os escombros do muro de Berlim mostrasse suas feições mais monstruosas, sepultando, en passant, as análises e avaliações que Francis fazia em seus últimos escritos -- os quais acabaram se revelando, mesmo, agônicos...
Ou, pelo contrário, talvez tenha perdido a chance de constatar que o fim do socialismo real não significava o fim da História, com o status quo se tornando tão insuportável que os homens es tão sendo obrigados a buscar uma nova utopia.
Quem sabe até, em mais uma reviravolta surpreendente, não teria sido ele um dos arautos dessa nova utopia?
O certo é que, independentemente de, em seus estertores, haver-se extraviado num labirinto do destino, foi um intelectual articulado e consistente como dificilmente se vê nestes tristes trópicos, deixando o legado de uma atuação memorável nas décadas de 1960 e 1970.
Talvez o melhor epitáfio para Paulo Francis seja outra de suas frases célebres: "Não há quem não cometa erros e grandes homens cometem grandes erros".
Colaboração enviada para o "Quem tem medo do Lula?" por Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político. Celso mantém o blog "Náufrago da Utopia" e é autor de livro homônimo sobre sua experiência durante a ditadura militar.
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