Nos últimos oito anos, o economista Delfim Netto foi um dos mais discretos - e mais consultados - conselheiros do presidente Lula
Autor(es): Delfim Netto
Isto é Dinheiro*
Responsável direto por um dos períodos de maior prosperidade da economia brasileira, o chamado “milagre econômico” da década de 70, Delfim foi voz ativa na defesa do crescimento e também dos instrumentos usados pelo governo para gerar um novo ciclo de riqueza e criação de empregos. Sobre Lula, ele não poupa elogios. “Foi o presidente que soube despertar o espírito animal dos empresários”, afirma. “E que, no fim, mostrou ser um grande democrata, ao rejeitar o terceiro mandato.” Leia a seguir sua entrevista.
DINHEIRO – Qual é o balanço dos oito anos de era Lula?
DELFIM NETTO – O Brasil começou a mudar, na verdade, na Constituição de 1988. Com todos os seus defeitos, ela revelou as preferências dos brasileiros. Queríamos uma sociedade democrática, republicana, razoavelmente justa e com maior igualdade de oportunidades. Os presidentes Sarney, Collor e FHC cumpriram seu papel e o Brasil foi se construindo. Mas tínhamos um problema gravíssimo. Quebramos duas vezes com FHC porque o setor externo era incapaz de responder às necessidades do País. Foi então que chegou a vez do Lula. E, com ele, a exportação passou a crescer 22% ao ano.
DINHEIRO – Sorte?
DELFIM – É sorte e é mérito. Ele ligou o plug do Brasil no mundo. Quando o Lula entrou, a nossa situação era dramática. Quando ele pisou no palácio, a inflação estava rodando a 30%. Tínhamos quebrado em 1998 e em 2002. E, quando terminou a eleição, o que o PSDB dizia? Será “Lula, o Breve”.
DINHEIRO – Eles pretendiam voltar?
DELFIM – Eles imaginavam que voltariam em dez meses. Só não sabiam que a Carta ao Povo Brasileiro, feita pelo Antônio Palocci, era para valer. O Lula honrou o compromisso. E, quando escolheu o Palocci como ministro da Fazenda, radicalizou a política econômica.
DINHEIRO – E qual foi o papel mais direto do Lula em relação ao ciclo atual
de expansão?
DELFIM – Foi no estado de espírito do brasileiro. Ele fez com que as pessoas acreditassem mais nas suas potencialidades e no potencial do próprio Brasil. Se você olhar o que aconteceu nos últimos oito anos, a maioria das pessoas no País teve uma melhoria importante no seu padrão de vida. Mas o ganho de autoestima foi ainda maior. Superamos de vez o complexo de vira-lata, definido pelo Nelson Rodrigues. No passado, o empresário brasileiro era considerado malandro, incompetente. O trabalhador aposentado era tido como vagabundo. Nada disso existe mais.
DINHEIRO – Mas quais foram as melhorias na política econômica?
DELFIM – O Lula persistiu numa política correta, que não era do Fernando Henrique nem do Pedro Malan. Era do FMI. Mas teve um Banco Central muito mais competente e encontrou no Guido Mantega um ótimo ministro. E o Henrique Meirelles também se mostrou um homem de caráter e de muitas convicções. O BC melhorou dramaticamente nos últimos anos.
DINHEIRO – Não houve descontrole na área fiscal?
DELFIM – Alguém pode dizer que ele aumentou os gastos com pessoal mais do que seria necessário. Talvez. É também possível que tenha feito transferências de renda acima do que a prudência recomendaria. Mas não há a menor dúvida de que manteve a política macroeconômica dentro de um bom padrão de qualidade. Não houve déficits gigantescos nem aumento da dívida pública – ao contrário, ela caiu. O Lula deu confiança ao brasileiro e consolidou de vez sua liderança na crise financeira de 2008.
DINHEIRO – A resposta foi adequada?
DELFIM – Hoje todos reconhecem isso. E a resposta rápida do Brasil dependeu muito do Lula. O sistema financeiro brasileiro cortou as linhas interbancárias por simples elegância, sem nenhuma necessidade. Poderia parecer perigoso continuar emprestando aqui, se lá fora havia um caos. Mas a disposição do Lula, de ir à televisão e dizer, olhando no olho do trabalhador, que ele não deveria ter medo de consumir e de perder o emprego, foi o fator determinante para evitar um contágio mais sério. No fim, o que tivemos foi mesmo uma marolinha, como ele próprio havia previsto.
DINHEIRO – Foi o momento Roosevelt do Lula?
DELFIM – Sim, foi o momento em que ele agiu como um dos maiores líderes da história americana, o ex-presidente Franklin Roosevelt, para restabelecer a confiança. E o Roosevelt dizia que a única coisa a temer era o próprio medo. No Brasil, o Lula teve um papel psicológico e também simbólico. Ele representa a própria mobilidade social brasileira. Hoje nenhuma pessoa que desceu do Nordeste num pau de arara tem dúvida de que, com um pouco de sorte, pode chegar a presidente. Lula é a mistura da sorte com o mérito.
DINHEIRO – O lulismo vai permanecer por muito tempo?
DELFIM – Sempre pode haver um sebastianismo, mas vai depender muito do que vem depois.
DINHEIRO – E o que vem depois, com a Dilma, será bom?
DELFIM – Eu acredito que a Dilma será uma excelente presidente. Não só porque as condições estão postas, mas também porque ela estuda muito cada assunto. Tem follow-up, cobra resultados e possui totais condições de administrar a máquina pública.
DINHEIRO – Como ela vai administrar a relação com o Lula, especialmente se ele demonstrar saudades do poder?
DELFIM – Muita gente ainda não conhece o Lula. A despeito de toda a provocação, ele é fundamentalmente um democrata. Muitos tentaram empurrá-lo na direção do chavismo. Aliás, não há desejo maior em parte da elite do que o de transformar Lula num Hugo Chávez. E ele sempre resistiu.
DINHEIRO – Ele teria conseguido o terceiro mandato?
DELFIM – Claro que sim. A maior demonstração de espírito democrático do Lula foi ter resistido à tentação do terceiro mandato. E com a seguinte justificativa: “Se eu aceitar o terceiro mandato, acaba a democracia no Brasil.”
DINHEIRO – E quais foram os erros da era Lula? Maior tolerância à corrupção?
DELFIM – Não é possível brigar com os fatos. O governo pode até achar que a imprensa inventa, exagera, mas nada do que foi publicado nasceu do nada. Cada uma dessas coisas tem ou uma fumacinha ou fogo mesmo embaixo. Agora, o Lula não é tolerante. Sempre que teve que agir, ele agiu. Afastou os amigos todos e tocou o barco adiante. Estão todos pendurados no Supremo Tribunal Federal. E o fato é que existe hoje um certo exagero. Temos um neoudenismo no Brasil, que não encontra uma liderança.
DINHEIRO – Falta um Carlos Lacerda?
DELFIM – Isso, o que temos é um udenismo sem Carlos Lacerda. Um udenismo muito mais pobre, que se autoconsumiu, destruindo sua maior liderança, que é o Fernando Henrique. E o curioso é que o Fernando nunca foi udenista. Ele é um conciliador. Se há algo que une o Lula e o Fernando, é o espírito de negociação.
DINHEIRO – FHC avalia que os últimos 16 anos – os oito dele e os oito do Lula – serão vistos no futuro pelos historiadores como uma coisa só. O sr. concorda?
DELFIM – Numa larga medida, sim. Mas é evidente que o Lula transcendeu ao Fernando. Por mais que sejam partes de um mesmo processo histórico, Lula gerou resultados mais expressivos. Mas, no fim, eles vão terminar tomando um chope. É do espírito dos dois a negociação.
DINHEIRO – Mas esse não parece ser o espírito da Dilma?
DELFIM – Ela é inteligente o suficiente para modificar seu comportamento. Ela sabe que representa hoje o maior poder da República. Quando ela estava na Casa Civil, a sua missão era entregar resultados. Quem tinha que fazer a negociação era o presidente Lula. Ela ainda não foi submetida a esse teste. Mas claramente tem consciência de que o mundo é muito mais político do que econômico.
DINHEIRO – Ela não será uma “gerentona” na Presidência?
DELFIM – Não creio. Ela sabe que gerente tem que ser a ministra de Minas e Energia, a chefe da Casa Civil, não a presidente da República. O presidente toma decisões políticas. O técnico entrega a melhor saída.
DINHEIRO – Como o Lula poderá ser lembrado no futuro? Maior do que Getúlio Vargas? Maior do que Juscelino Kubitschek?
DELFIM – Getúlio e JK estão no passado. O Lula daqui a 20 anos estará na mesma dimensão deles. E olha: não existe nada mais cruel do que o tempo. Ele vai ficar na imagem, numa lembrança de coisas extraordinárias – até as que ele não fez. Mas será lembrado sempre como um bom presidente. E o Lula, ao sair, também deu a oportunidade para que o PT se transforme num outro partido.
DINHEIRO – Com assim?
DELFIM – O PT vai precisar de muito mais inteligência, muito mais transigência, muito mais acomodação do que podia fingir que tinha, quando o Lula o protegia de sua natureza.
DINHEIRO – O José Dirceu até declarou que a eleição da Dilma foi mais importante do que a do Lula, porque representa a vitória do projeto do PT e não de um mito.
DELFIM – Ele pode dizer o que quiser. Mas, na verdade, o PT terá que se transformar num partido muito mais democrático, eliminando esse autoritarismo que, vez ou outra, acaba transparecendo. O Lula fez tudo o que tinha que fazer dentro da democracia. Alguns petistas, que ainda têm alma autoritária no seu DNA, pensam em fazer fora. Não vão conseguir. É melhor seguir o caminho que o Lula trilhou e deixou como exemplo.
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