Rui Martins - do Festival de Locarno, Suíça
O Festival de Locarno reparou uma velha injustiça cometida pela sociedade suíça contra um de seus melhores cineastas – deu o Leopardo de Ouro a Alain Tanner, cujo primeiro longa-metragem tinha sido discretamente proibido na Suíça.
Um dos maiores cineastas suíços, Alain Tanner foi marginalizado e rejeitado durante algumas décadas dentro da Suíça por ser um homem politicamente de esquerda e por ter feito filmes que desagradavam o establishment suíço.
Essa rejeição teve sua recíproca por Alain Tanner, que obrigado a fazer alguns de seus filmes fora da Suíça, nunca escondeu sua aversão pela sociedade helvética. Só nos últimos anos, Tanner foi reconhecido pela sociedade suíça e o Festival de Cinema de Locarno acaba de lhe entregar um Leopardo de Ouro por sua obra. Mas é necessário se destacar que Locarno foi exceção na Suíça. Pois seu filme Charles mort ou vif tinha ganhado o Leopardo de Ouro em 1969.
Por uma coincidência da vida, conheci Alain Tanner há quase 40 anos, em Paris, logo no início de meu exílio. Passava pelo Quartier Latin, quando vi num dos seus pequenos cinemas, na rua de La Huchette, um simples aviso na porta – Cinema Suíço, hoje Charles mort ou vif, de Alain Tanner. Entrei a tempo de pegar o começo do filme.
Era agosto ou outubro de 1969, não me lembro exatamente, e Paris ainda vivia a atmosfera deixada pela revolta estudantil de 1968. O filme de Tanner tinha sido feito dentro do espírito contestador de maio-68 e mostrava a ruptura de um suíço com o sistema, internado a seguir numa clínica psiquiátrica por sua família inconformada. Charles mort ou vif foi a chave para eu entender a sociedade suíça, seu racismo latente que, em 1970, iria detonar o movimento A Suíça para os Suíço, do líder nacionalista de extrema-direita, anti-imigrantes, Schwarzenbach. Sua hipocrisia do segredo bancário, exploradora dos países pobres que seria contada em 76, no livro de Jean Ziegler, Uma Suíça Acima de qualquer Suspeita.
Terminado o filme, Alain Tanner, naquela época um jovem de 40 anos, explicou como tinha sido o movimento estudantil de 68 na Suíça e respondeu perguntas do curioso público ali reunido.
Ao contar a Alain Tanner essa minha experiência, neste festival de Locarno, ele revelou um fato que me era desconhecido. O filme Charles mort ou vif, considerado por mim uma autêntica obra-prima do cinema, tinha sido praticamente proibido de exibição na Suíça mesmo sem uma declaração oficial a respeito. Tanto que, para ser exibido, foi preciso seus produtores e ele próprio entrarem com um processo contra os distribuidores suíços que, reunidos em cartel, tinham bloqueado seu filme.
Para se ter uma idéia dessa rejeição, é como se o Pagador de Promessas, de Glauber Rocha, tivesse sido proibido de passar no Brasil na época da ditadura, coisa que os militares não ousaram fazer. Mas a Suíça tranquilamente fez e ousou com Tanner. E Charles mort ou vif só foi exibido discretamente na Suíça, nos anos 80. Era o troco dos banqueiros e donos do poder suíço ao Tanner marxista, que se suspeitava pertencer ao partido comunista em plena guerra-fria.
INCESTO E RETORNO AO CRIACIONISMO EM LOCARNO
Clonagem e incesto apimentam o filme Womb, no festival de Locarno, mexendo em genética e provocando controvérsia.
Para os fundamentalistas religiosos, ardorosos defensores da teoria criacionista do casal Adão e Eva, para explicar o surgimento da espécie humana, desde os evangélicos ortodoxos aos judeus talmúdicos e árabes islamitas, a pergunta mais difícil de responder é com quem se casavam, para não se dizer transavam, os filhos do legendário casal?
Ora, supondo-se terem sido Adão e Eva o pai e mãe da humanidade, também fazem parte do criacionismo dois tabus atuais para as religiões – o clonagem e o incesto. Mesmo se Eva não é uma cópia de Adão, teria havido clonagem, pois a Bíblia fala que depois de ter criado Adão com o barro, Deus teria criado a mulher de uma costela de Adão.
E o fato dos filhos e filhas se casarem entre si, sem se omitir a possibilidade de Adão ter filhas ou netas amantes assim como Eva teria filhos e netos amantes, mostra que no princípio do mundo bíblico, o incesto era coisa comum, sem se esquecer das filhas de Lot que, após a destruição de Sodoma e Gomorra e a transformação da esposa de Lot em estátua de sal, tiveram de « dormir » com o pai para assegurarem descendência.
O cineasta húngaro Benedek Fliegauf dirigiu a coprodução germano-húngaro-francesa Womb, um estranho filme rodado na Frísia, na Alemanha do norte, próxima da Dinamarca, onde vive uma mãe isolada do mundo com seu filho. A história é uma ruptura dos tabus do clonagem e do incesto, com belas imagens mesmo se a economia de diálogos cria insatisfação.
É uma história de amor entre duas crianças, Rebecca e Thommy, interrompida pela mudança dos pais de Rebecca para o Japão. Cerca de doze anos depois, Rebecca vai ao encontro de Thommy, mas ele morre logo depois num acidente, quando ambos tinham transformado o amor infantil em adulto e se preparavam para o futuro.
Inconformada com a perda, Rebecca consegue se engravidar de seu namorado por clonagem e para evitar preconceitos se isola num litoral deserto, onde vive quase exclusivamente para seu filho, que cresce igual ao seu namorado do passado.
E, ao chegar aos vinte anos, o inesperado ou esperado acontece – Rebecca se apaixona pelo filho e, talvez movido por uma memória genética, Thommy 2 também se sente atraído pela mãe como se fora a namorada do passado. E transam. Porém, ele um jovem de 20 anos, diante do risco de se tornar amante da mãe de mais de 40 anos, decide partir. Sentada diante da praia e acariciando seu ventre de grávida, Rebecca está grávida do próprio filho.
O tema do filho que dorme com a mãe tinha também sido usado num de seus filmes pelo cineasta francês Louis Malle. E já foi tema de tragédia grega.
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Rui Martins é ex-correspondente do Estadão e da CBN, após exílio na França. Autor do livro “O Dinheiro Sujo da Corrupção”, criou os Brasileirinhos Apátridas e propõe o Estado dos Emigrantes. Vive na Suíça, colabora com os jornais portugueses Público e Expresso, é colunista do site Direto da Redação. Colabora com o Correio do Brasil , com a Agência Assaz Atroz e com este "Quem tem medo do Lula?".
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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
Agência Assaz Atroz
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